quinta-feira, 7 de abril de 2011

Voz de comando

Pedro sempre reinou. A mãe dizia “guri, não vai aí que tu vai te machucar”, “guri, não mexe na panela no fogo”, “guri, leva um casaco e o guarda-chuva”. E a mãe do Pedro sempre tinha razão. Se ele ia, se machucava. Se ele mexia na panela, se queimava. Se não levava o casaco e o guarda-chuva, pode apostar, chovia e fazia o maior frio.

Quanto o Pedro fez 18 o pai lhe deu duas opções. Ou faz a carteira de motorista ou faz a carteira de motorista. Pedro rodou três vezes no teste prático. Ficava nervoso, receoso com o que o avaliador iria falar. Pedro odiava que falassem enquanto ele dirigia. Nem rádio tinha no carro. No trânsito era só ele, o carro e o vento. Sim, o vento, porque o carro de Pedro não tinha ar condicionado.

Toda vez que tinha que dar carona a um amigo, levar a mãe na casa de alguma amiga ou o pai ao médico, Pedro fazia uma cerimônia. Tinha no porta-luvas do carro um guia de ruas, com um mapa gigantesco da cidade. Ainda com o carro estacionado pedia ao caroneiro o endereço, pegava o guia e com a mesma solenidade com que um padre folheia o missal, Pedro passava página a página o guia.

Um dia Pedro se apaixonou. Luciana era linda e andava a pé. Pedro conquistou a moça com a sua boa vontade para dar caronas intermináveis. Levava a guria para onde ela quisesse. Mas sempre se perdia. Luciana tinha alergia a pó e abrir o guia de ruas era como provocar um tsunami de espirros. Bem capaz que o Pedro marcaria esse gol contra. Então, mesmo se perdendo, Pedro ouvia as orientações de Luciana.

“Vira ali.”

“Dobra à direita.”

“Passou, era a outra rua.”

“Presta atenção, Pedro. Te falei que era para entrar depois da casa amarela.”

“Cuida Pedro! Vai bater no carro do lado.”

O namoro resistiu menos que um tanque cheio. Pedro podia aturar tudo: ciúmes, horas extras, ex-namorados ligando, roupas curtas, baladas sozinhas. Tudo, menos os palpites no trânsito.

Na tentativa de reatar, Luciana mandou para casa de Pedro um pequeno pacote e um bilhete.

“Aceito as caronas de volta se aceitar o meu presente. E usá-lo.”

Ele nem esperou terminar de ler e já estava rasgando o pacote. Um GPS.

- O que é isso? – perguntou Pedro sem entender a função do aparelhinho.

- Um GPS. É um aparelho que as mulheres inventaram para que os homens não se percam, não precisem fazer cara feia para perguntar onde fica tal rua e cheguem sempre no horário – explicou a cunhada, antes de levar uma cutucadinha do marido.

- Vai ser a última chance dela – determinou o Pedro, já se localizando no mapa.

E o GPS era uma beleza. A voz mais macia que algodão doce parecia seduzir Pedro mais do que canto de sereia.

“Vire a direita em 100 metros.”

E Pedro virava.

“Ande mais 135 metros e vire a esquerda e depois à direta.”

E Pedro dirigia o 135 metros e virava a esquerda e depois à direita.

Era, enfim, obediente.

Mas a obediência teve um custo. Quando Luciana estava no carro não podia dar um pio. Só a voz do GPS ilustrava o ambiente. Era como se fosse a alma daquele Gol bolinha verde metálico.

- Clarinha.

- Clarinha. Tu deu nome pro GPS?

- Pro GPS não. Para a moça que narra o meu itinerário.

- Para mim chega. Onde já se viu namorada ser trocada por voz de GPS. Prefiro um perdido que me ouça que um achado que me ignora, que ignora as minhas ajudas pelo caminho.

- Pode ir. A porta do Gol é serventia da casa.

E Luciana saiu batendo porta. Lacrando.

E faz algum tempo que a única voz feminina que se ouve dentro daquele Gol é a da Clarinha. Única. Absoluta. Exata. E só assim a mãe do Pedro descobriu o que era a tal voz de comando que a adestradora de cães tanto falava.