sexta-feira, 3 de junho de 2011

Gorjeta

"Ele me abandonou. Vai embora pra São Paulo semana que vem e sequer foi capaz de mandar uma mensagem avisando. Onde eu vou arrumar outro cabeleireiro como ele?"
A mulher de casaco de grife soluçava. Eu, uma simples atendente de cafeteria, de longe achei que tinha perdido um parente, que o marido a havia trocado por outra ou que o filho tinha ido morar com a namorada que ela odiava mais que a própria sogra. A gente ouve cada uma.
Estava na mesa 8. Ela e a amiga com luzes nos cabelos tinham saído do salão. A chorona soluçava tanto que mal conseguiu fazer o pedido ao Luiz. Coube à das luzes a tarefa.
"Dois cafés. Só. E rápido."
O Luiz já se afastava da mesa quando a mulher das luzes gritou.
"Moço, traz uma água, sem gás também, por favor."
Dez minutos depois do rivotril e de meia garrafa de água mineral, a chorona tinha parado de chorar e nem havia tocado no café, já frio.
Na mesa 6 um casal discutia a decoração do quarto do bebê. Pela barriga da moça, estavam atrasados, porque era bem possível que o bebê chegasse bem antes dos móveis de Gramado branco e com recortes de ursinho. Quando saíram, sem deixar gorjeta, esqueceram também o rascunho do que parece ser um painel. Lia-se Bernardo e me pareceu uma série de ursos desenhados.
Abri o caderno e guardei no meio das folhas. Se eles voltarem, devolvo.
Minto. Guardo tudo no caderno. Costumo roubar frases. Diálogos perdidos entre um gole de café e outro. Alguns mais vazios que as xícaras que voltam para a cozinha. Faz três anos e cinco meses que trabalho como caixa aqui no café e já preenchi cinco cadernos universitários, daqueles com espirais. No atual, começado em fevereiro, já se foram 30 folhas, frente e verso. Sim, eu tenho um método. Anoto a data, descrevo os clientes e sigo anotando as frases perdidas. Se for homem, faço um triângulo. Se for mulher, um quadrado. Sim, porque as mulheres têm mais lados que os homens.
As crianças são bolinhas. Meninos, bolinhas vazias. Meninas, bolinhas pintadas. Ultimamente tenho visto por aqui mais quadrados e bolinhas pintadas. Em geral, mesas cheias de quadrados e algumas bolinhas pintadas.
Uma das minhas anotações é se fumam. Os clientes sempre pedem cinzeiro quando pedem espresso. Mais quadrados que triângulos. Em geral, no deck e sem bolinhas, nem vazias ou pintadas.
Fumam e aproveitam para falar entre uma baforada e outro. É mais difícil roubar frases de quem fuma. A leitura labial fica dificultada com o cigarro na boca e a fumaça em frente ao rosto.
A chorona pediu a conta. Acho que estava envergonhada. A amiga quis pagar no cartão. E o Luiz pediu que ela viesse até o caixa. É aqui que eu trabalho. Entre digitar a senha e a máquina cuspir o papel dizendo que, sim, ela tem saldo no banco, a mulher de luzes no cabelo me olha. Depois de um longo suspiro e de bater as longas unhas vermelhas na mesa fazendo aquele barulho enlouquecedor que as clientes acham que só elas fazem e que a gente ouve 30 vezes no dia, ela me encarou.
"Triste perder um cabeleireiro tão bom, ? O que vai ser dela sem ele? Só ele acertava o penteado. Imagina, um surto de profissionais qualificados indo embora de Porto Alegre porque em São Paulo e no Rio ganham mais. Vai ser assim com os engenheiros e até com os pedreiros. Já está faltando mão de obra. Imagina, como vai ser na Copa, então, sem ninguém pra atender os turistas?"
E, antes que ela largasse mais um "imagina", a máquina dispensou o papelzinho e ela foi embora. "Imagina como vai ser na Copa."
Oitava vez dita hoje. Cinco quadradinhos, três triângulos.
E desde o dia 31 de maio de 2009, quando a Fifa nos brindou com essa graça, já foram 6.230 vezes, nesses mais ou menos 700 dias _ descontando as minhas folgas e os feriados - que a frase foi repetida nesse café.
Imagina como vai ser na Copa, então?

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