Ainda bem que a casa está limpa. Se não, as marcas dos chinelos dela bem que poderiam indicar o meu trajeto pela casa. Essa mulher é um grude. Fica o tempo todo atrás de mim. No quatro. Na sala. Na cozinha.
"Seu Carlos, o senhor acha que a estante da TV tá bem limpa?"
"Olha aqui, Seu Carlos, como a prateleira dos livros tá arrumada."
"Não se preocupe que o banheiro e o quarto eu já limpei."
Ainda bem que é uma vez por semana. A gente espera pelo dia da faxina como criança em véspera de Natal. Confesso, não lavo a louça da janta e deixo até as xícaras do café sobre a mesa. O dia da faxina é o meu de folga do avental do churrasqueiro, mais usado com esponja e sabão líquido do que com carvão e sal grosso. Visto mais o avental do que a braçadeira de capitão do time de futebol.
Enfim, a Wera chega cedo, quando a Flávia já saiu para a aula em Sapiranga. Sobra pra mim dar as primeiras ordens da quinta-feira, o dia mais longo da semana. A Flávia escolheu a quinta com a justificativa de que a casa ficaria um brinco até o final de semana. Ela ainda acredita nisso.
- Olha, dona Wera, a Flávia deixou dito que é para a senhora tirar a roupa de cama, tem que dar uma geral lá nos fundos e, se não chover, botar os tapetes pra rua.
- Pode deixar, Seu Carlos. O senhor viu como a casa ficou limpa na semana passada, né?
A Wera é muito carente. Nos dois sentidos.
Mora numa casa pequena, de madeira, com os três filhos menores. Os dois mais velhos já casaram. O marido foi embora faz uns três anos, desde que ela começou a fazer faxina aqui em casa. A Flávia que contratou ela. Eu nem opino, só cumpro ordens.
Outro dia, a Wera encontrou uma goiaba na geladeira. Eu tinha pego no sítio do Pedro Paulo, estavam lindas. Eu adoro goiaba. Quando fui comer, nem sinal do bicho da goiaba tinha. Se tinha, estava no estômago da Wera.
A Wera precisa mais de feedback do que a equipe lá da firma. E parece que o feedback tem que ser sempre meu. Não adianta o elogio da Flávia.
E ela anda atrás de mim pela casa. Não tenho sossego no escritório. E, ainda bem, ela não bateu na porta do banheiro para ver se eu preciso de ajuda ou de mais papel higiênico.
Quando eu termino o trabalho mais cedo e vou para casa, supostamente para descansar, e a Wera está lá, dou um jeito de fugir para a casa da sogra. Antes o silêncio ensurdecedor da dona Palmira e do Waldir, me olhando seco por deitar no sofá da sala enquanto eles olham a novela das seis, do que a matraca da Wera.
Outro dia, decidi encarar a fera, ou melhor, a Wera. Mal cheguei em casa e ela, ajoelhada no chão, com o pano um pano molhado e encardido, limpava a sala.
- Vou tirar os tênis pra não sujar o que a senhora já limpou.
- Ah, mas o senhor não pode entrar agora. Até porque vai andar de pé descalço e o piso tá frio.
- Eu boto o chinelo.
- Ah, não vai dar. Tô usando eles.
Ela adora falar pelos cotovelos, me perseguir pela casa, me acordar quando finjo que estou dormindo ou ficar falando na minha frente quando eu faço de conta que os fones de ouvido do radinho ainda funcionam. Tudo bem, eu entendo. Agora, usar os meus chinelos... Não se acha havaiana de sola branca e tira azul todo dia. Dona Wera foi longe demais.
- Seu Carlos, vou fazer uma pausa agora à tarde para ir tomar chá com a dona Palmira - me disse ela, olhando fundo como se fosse a verdadeira dona da casa.
- Pode ir, dona Wera.
Cinco minutos de paz e silêncio. Mesmo que seja de pés descalços.