quinta-feira, 23 de junho de 2011

Bicho da Goiaba

Ainda bem que a casa está limpa. Se não, as marcas dos chinelos dela bem que poderiam indicar o meu trajeto pela casa. Essa mulher é um grude. Fica o tempo todo atrás de mim. No quatro. Na sala. Na cozinha.
"Seu Carlos, o senhor acha que a estante da TV tá bem limpa?"
"Olha aqui, Seu Carlos, como a prateleira dos livros tá arrumada."
"Não se preocupe que o banheiro e o quarto eu já limpei."
Ainda bem que é uma vez por semana. A gente espera pelo dia da faxina como criança em véspera de Natal. Confesso, não lavo a louça da janta e deixo até as xícaras do café sobre a mesa. O dia da faxina é o meu de folga do avental do churrasqueiro, mais usado com esponja e sabão líquido do que com carvão e sal grosso. Visto mais o avental do que a braçadeira de capitão do time de futebol.
Enfim, a Wera chega cedo, quando a Flávia já saiu para a aula em Sapiranga. Sobra pra mim dar as primeiras ordens da quinta-feira, o dia mais longo da semana. A Flávia escolheu a quinta com a justificativa de que a casa ficaria um brinco até o final de semana. Ela ainda acredita nisso.
- Olha, dona Wera, a Flávia deixou dito que é para a senhora tirar a roupa de cama, tem que dar uma geral lá nos fundos e, se não chover, botar os tapetes pra rua.
- Pode deixar, Seu Carlos. O senhor viu como a casa ficou limpa na semana passada, né?
A Wera é muito carente. Nos dois sentidos.
Mora numa casa pequena, de madeira, com os três filhos menores. Os dois mais velhos já casaram. O marido foi embora faz uns três anos, desde que ela começou a fazer faxina aqui em casa. A Flávia que contratou ela. Eu nem opino, só cumpro ordens.
Outro dia, a Wera encontrou uma goiaba na geladeira. Eu tinha pego no sítio do Pedro Paulo, estavam lindas. Eu adoro goiaba. Quando fui comer, nem sinal do bicho da goiaba tinha. Se tinha, estava no estômago da Wera.
A Wera precisa mais de feedback do que a equipe lá da firma. E parece que o feedback tem que ser sempre meu. Não adianta o elogio da Flávia.
E ela anda atrás de mim pela casa. Não tenho sossego no escritório. E, ainda bem, ela não bateu na porta do banheiro para ver se eu preciso de ajuda ou de mais papel higiênico.
Quando eu termino o trabalho mais cedo e vou para casa, supostamente para descansar, e a Wera está lá, dou um jeito de fugir para a casa da sogra. Antes o silêncio ensurdecedor da dona Palmira e do Waldir, me olhando seco por deitar no sofá da sala enquanto eles olham a novela das seis, do que a matraca da Wera.
Outro dia, decidi encarar a fera, ou melhor, a Wera. Mal cheguei em casa e ela, ajoelhada no chão, com o pano um pano molhado e encardido, limpava a sala.
- Vou tirar os tênis pra não sujar o que a senhora já limpou.
- Ah, mas o senhor não pode entrar agora. Até porque vai andar de pé descalço e o piso tá frio.
- Eu boto o chinelo.
- Ah, não vai dar. Tô usando eles.
Ela adora falar pelos cotovelos, me perseguir pela casa, me acordar quando finjo que estou dormindo ou ficar falando na minha frente quando eu faço de conta que os fones de ouvido do radinho ainda funcionam. Tudo bem, eu entendo. Agora, usar os meus chinelos... Não se acha havaiana de sola branca e tira azul todo dia. Dona Wera foi longe demais.
- Seu Carlos, vou fazer uma pausa agora à tarde para ir tomar chá com a dona Palmira - me disse ela, olhando fundo como se fosse a verdadeira dona da casa.
- Pode ir, dona Wera.
Cinco minutos de paz e silêncio. Mesmo que seja de pés descalços.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Guarda-roupa

Se depender do guarda-roupa, a Lara jamais terá Alzheimer. Abrindo aquelas seis portas dá para saber mais sobre ela do que em álbuns de fotografias, diários, ou ficha policial.
Lara se deu conta disso outro dia. Me parou na rua, enquanto passeava com o cachorro. Nem ligou para as quatro sacolas de compras (pesadas) que eu carregava do súper até em casa. Queria me contar que havia lembrado de uma festa que fomos quando tínhamos 14 anos. Eu confesso que não lembrava.
- Nem eu. Mas o guarda-roupa me lembro – disse a Lara, me fazendo largar as sacolas no chão pra ouvir a história.
A tal memória havia voltado por causa de uma saia de tafetá cinza que eu e ela compramos numa loja de roupas de festa na Rua Muck. A tal loja tinha uma vitrine fantástica. Ampla, colorida, com vestidos que mais pareciam ter saído do tapete vermelho do Oscar, mas que havia sido importadas do Bom Retiro. Ficava em frente a uma papelaria em que íamos sempre. Primeiro porque ficava a duas quadras da escola e segundo por justamente ser em frente à loja.
A saia, manequim 36, que periga ela ainda conseguir vestir, estava guardada, enrolada em um papel de seda, dentro de uma caixa de papel, no fundo do roupeiro.
- Tu lembra como a gente usou aquela saia?
- Mais que o uniforme da escola.
Sim, era uma saia em sociedade.
Naquela época ela servia em todas nós, e a cada festa de 15 anos, ela passava para uma amiga usar. Isso só trocando o corpete, a sandália, a estola. Foi figurino em clube, em churrascaria, em CTG. Dançou É o Tchan, Mila, Dança do Vampiro e outras barbaridades que a gurizada dançava naquelas festas em que não se podia beber e em que todo mundo volta para casa graças à carona do pai de alguém.
A Lara foi enumerando as peças de roupa que tinha achado no armário. O vestido que foi no casamento de uma amiga nossa que recém se separou, o blusão de moletom bege que vestia no dia em que deu o primeiro beijo, uma roupinha de bebê bordada que ela usava e que a mãe guardou.
- Os roupeiros guardam mais segredos sobre nós e contam mais do que a nossa história do qualquer biografia. Quem sabe coisas que, escondidas no fundo do armário, a gente queira mais é esconder - me disse a Lara, me arrastando pelo braço.
Saí dali com as sacolas, devidamente acomodadas no porta-malas do carro da Lara, que ela foi buscar em casa, há duas quadras dali, depois de me convencer a ir com ela escolher um roupeiro novo.
Quer ter onde guardar memórias novas.
Mas jamais se desfazer das antigas. São elas que a fizeram ser louca desse jeito.
Pelo visto ela não costuma fazer muitas doações para a campanha do agasalho.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Gorjeta

"Ele me abandonou. Vai embora pra São Paulo semana que vem e sequer foi capaz de mandar uma mensagem avisando. Onde eu vou arrumar outro cabeleireiro como ele?"
A mulher de casaco de grife soluçava. Eu, uma simples atendente de cafeteria, de longe achei que tinha perdido um parente, que o marido a havia trocado por outra ou que o filho tinha ido morar com a namorada que ela odiava mais que a própria sogra. A gente ouve cada uma.
Estava na mesa 8. Ela e a amiga com luzes nos cabelos tinham saído do salão. A chorona soluçava tanto que mal conseguiu fazer o pedido ao Luiz. Coube à das luzes a tarefa.
"Dois cafés. Só. E rápido."
O Luiz já se afastava da mesa quando a mulher das luzes gritou.
"Moço, traz uma água, sem gás também, por favor."
Dez minutos depois do rivotril e de meia garrafa de água mineral, a chorona tinha parado de chorar e nem havia tocado no café, já frio.
Na mesa 6 um casal discutia a decoração do quarto do bebê. Pela barriga da moça, estavam atrasados, porque era bem possível que o bebê chegasse bem antes dos móveis de Gramado branco e com recortes de ursinho. Quando saíram, sem deixar gorjeta, esqueceram também o rascunho do que parece ser um painel. Lia-se Bernardo e me pareceu uma série de ursos desenhados.
Abri o caderno e guardei no meio das folhas. Se eles voltarem, devolvo.
Minto. Guardo tudo no caderno. Costumo roubar frases. Diálogos perdidos entre um gole de café e outro. Alguns mais vazios que as xícaras que voltam para a cozinha. Faz três anos e cinco meses que trabalho como caixa aqui no café e já preenchi cinco cadernos universitários, daqueles com espirais. No atual, começado em fevereiro, já se foram 30 folhas, frente e verso. Sim, eu tenho um método. Anoto a data, descrevo os clientes e sigo anotando as frases perdidas. Se for homem, faço um triângulo. Se for mulher, um quadrado. Sim, porque as mulheres têm mais lados que os homens.
As crianças são bolinhas. Meninos, bolinhas vazias. Meninas, bolinhas pintadas. Ultimamente tenho visto por aqui mais quadrados e bolinhas pintadas. Em geral, mesas cheias de quadrados e algumas bolinhas pintadas.
Uma das minhas anotações é se fumam. Os clientes sempre pedem cinzeiro quando pedem espresso. Mais quadrados que triângulos. Em geral, no deck e sem bolinhas, nem vazias ou pintadas.
Fumam e aproveitam para falar entre uma baforada e outro. É mais difícil roubar frases de quem fuma. A leitura labial fica dificultada com o cigarro na boca e a fumaça em frente ao rosto.
A chorona pediu a conta. Acho que estava envergonhada. A amiga quis pagar no cartão. E o Luiz pediu que ela viesse até o caixa. É aqui que eu trabalho. Entre digitar a senha e a máquina cuspir o papel dizendo que, sim, ela tem saldo no banco, a mulher de luzes no cabelo me olha. Depois de um longo suspiro e de bater as longas unhas vermelhas na mesa fazendo aquele barulho enlouquecedor que as clientes acham que só elas fazem e que a gente ouve 30 vezes no dia, ela me encarou.
"Triste perder um cabeleireiro tão bom, ? O que vai ser dela sem ele? Só ele acertava o penteado. Imagina, um surto de profissionais qualificados indo embora de Porto Alegre porque em São Paulo e no Rio ganham mais. Vai ser assim com os engenheiros e até com os pedreiros. Já está faltando mão de obra. Imagina, como vai ser na Copa, então, sem ninguém pra atender os turistas?"
E, antes que ela largasse mais um "imagina", a máquina dispensou o papelzinho e ela foi embora. "Imagina como vai ser na Copa."
Oitava vez dita hoje. Cinco quadradinhos, três triângulos.
E desde o dia 31 de maio de 2009, quando a Fifa nos brindou com essa graça, já foram 6.230 vezes, nesses mais ou menos 700 dias _ descontando as minhas folgas e os feriados - que a frase foi repetida nesse café.
Imagina como vai ser na Copa, então?