quarta-feira, 27 de julho de 2011

Lição de casa

A Mariana nunca acreditou naquela história de príncipe encantado, cavalo branco e outras coisas que contam para meninas. Bem pelo contrário. Cada vez que o seu Paulo engatava um "era uma vez", a Mariana virava para o lado e dizia:

– Se é pra contar essas histórias deixa que eu durma sozinha, pai – e botava o seu Paulo para correr.

E desde que a Mariana aprendeu a ler, nunca mais conseguiram contar histórias de princesas que dormiam por anos, ou que era escravizada por meias-irmãs malvadas. A Mariana era prática. Trocava as Barbies facilmente pelos kits de ciência e de blocos de montar.

O sonho dourado da Mariana não era um vestido de babados bem rodado, acompanhado de uma coroa de cristais. Era um bichinho de estimação. Mas não podia ser um cachorro meigo ou um gato preguiçoso. Precisava ser um bicho estranho. Servia para botar medo nos irmãos e nas patricinhas da terceira série.

Um dia, a professora Marta entrou na sala com uma pilha de livros e um pote de margarina. A professora Marta era tipo uma tia daquelas que todo mundo tem. Era alta, mais velha que a mãe da Mariana e usava um coque. Todos os dias o mesmo coque. A saia de prega marrom e as camisas estampadas com flores nunca deixavam que o outono baixasse sobre a sala de aula. E a professora Marta sabia como cativar a gurizada.

A Mariana adorava a Marta. Não era pelas lições de matemática explicadas com palitos de fósforo nem pelas aulas de desenho em que era permitido se sujar, sujar os colegas e o que mais se visse pela frente. Era pelas aulas de ciência.

– Profe, o que tem no pote de margarina?

– Te acalma Mariana. Senta lá na tua classe. Na hora certa vocês vão saber.

– Mas profe, eu queria ver.

– Se quer ver, porque está com os dedinhos na tampa. Ou a senhorita tem olhos nas pontas dos dedos?

Mariana olhou para as pontas dos dedos com atenção. E foi tempo suficiente da professora tirar o pote do alcance das mãos mais curiosas da sala de aula.

O sinal já estava quase batendo para o recreio quando a professora anunciou:

– Depois do recreio, vou contar para vocês como nascem os sapos.

Para quê? Foi o mesmo que dizer para a Mariana nem sair da sala. Na verdade, Marta teve que empurrar a menina para o pátio da escola enquanto fechava a porta. E menos de 18 minutos depois, antes de o sinal bater, lá vinha ela pulando no corredor, balançando o rabo de cavalo. Meio que disfarçando a ansiedade, meio que preparando uma das suas.

E quando a Marta voltou para abrir a sala, a Mariana estava colada na porta. E foi a primeira a se ajeitar na classe.

– Crianças, hoje a gente vai conhecer como nascem os sapos. Aqui nesse pote eu tenho um girino. Vocês sabem o que é um girino?

– É um bebê sapo? – respondeu Mariana antes mesmo que a professora dissesse "levante a mão quem sabe".

– Isso mesmo – completou Marta abrindo o pote de margarina.

Lá dentro, um girino minúsculo se movimentava numa ansiedade maior que a da Mariana.

Depois de explicar como aquela larva se transformaria num sapo a Marta sugeriu:

– Lembram quando o Felipe levou para casa a sementinha do feijão plantada no algodão? Pois agora, um de vocês vai receber a missão de cuidar do sapinho. Quem quer?

E a Marta nem tinha terminado de falar e a Mariana já tinha gritado:

– Eu!

E lá se foi a Mariana pra casa no final daquela tarde de abril com o pote de margarina nas mãos.

– Filha, o que é isso? Que pote é esse?

– É o Leco.

– Leco?

– É mãe, meu girino.

– Que história é essa?

– Mãe, tu e o pai sempre disseram que a gente não podia ter um bichinho de estimação aqui em casa porque não temos espaço, porque o mano tem alergia e porque vocês é que acabariam cuidando. Então, a professora Marta levou o girino pra aula e deu pra quem quisesse cuidar. E eu quero, mãe. Deixa, deixa? Eu até já dei nome pra ele, vai ser Leco.

A dona Joana não teve como dizer não. E lá saiu a Mariana, de uniforme da escola com o girino no pote de margarina.

Durante duas semanas ela alimentou a larva com pedacinhos de pão, apresentou ele para os vizinhos do prédio e até cantava músicas de ninar.

Seu Paulo e a dona Joana só pensavam o que iria acontecer quando o bicho crescesse e virasse um sapo gordo, meio gosmento. Era fatal que a Mariana perderia o interesse a abandonaria o bichinho. Foram muitas conversas até convencer a Mariana de que o melhor seria levar o Leco para perto dos seus. Libertá-lo no lago do parque perto de casa para que crescesse no seu ambiente natural. Dois meses depois, convenceram a menina.

E num domingo de sol, como quem leva um parente na rodoviária, Mariana e seu Paulo saíram com o pote de margarina para devolver o Leco para casa dele. A menina voltou chorando e com a promessa de poderia voltar lá a hora que quisesse para conversar com o girino.

Os anos passaram, a Mariana cresceu, voou as tranças e nunca esqueceu o Leco. O seu único bichinho de estimação. Veio o trabalho, os namoros, um noivado desfeito e uma grande reforma no edifício de apartamentos onde sempre morou.

Eis que um dia, enquanto tirava a roupa do varal da janela da lavanderia, a campainha tocou. Resultado: um prendedor de roupa a menos no cesto, um a mais na horta do seu Carlos.

– Pronto – disse Mariana abrindo a porta.

Do lado de fora, no corredor do oitavo andar, estava um rapaz alto, ruivo, de olhos verdes arregalados, bem vestido e com um bilhete nas mãos.

– O seu Paulo ainda mora aqui?

– Mora sim, por quê?

– Faz muito tempo que eu estive aqui. Ele está? Posso falar com ele?

– Ele está trabalhando. Quem é você?

– Eu sou o Leco.

– Pode entrar, por favor.

E desde então a Mariana tirou os livros das caixas e colocou em estantes, os de contos de fadas com destaque. Na dúvida, dizia ela, não custa acreditar.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Sereno

A lágrima escorria do olho esquerdo e corria pelo rosto. Mais rápida que ela só a mão direita da Ninna que amparava a gota antes que chegasse ao queixo. Depois da quinta lágrima, a Ninna desistia de secar o rosto da amiga.

De olhar, foi paixão a primeira vista. Parece que estava escrito no caderno de tarefas do destino “em 2008, apresentar a Ninna para a Leila”. E foi assim que aconteceu. Pareciam duas irmãs que tinham sido separadas no parto. E a Leila nem precisava que a gravidade fizesse com que aquela montoeira de lágrimas despencasse. Antes que os olhos ficassem mais inundados que a Ilha Grande dos Marinheiros depois de três dias de chuva e vento sul, uma já sabe o que se passava com a outra.

Só de ver o brilho diferente no olho da Ninna, a Leila já sabia.

- Ele ligou, né? Não mente. To vendo nos teus olhos.

Nem precisava de resposta.

A Ninna decorou os suspiros da Leila. Mais longos para paixões, rápidos para o estresse, com balanço de ombros para cansaço e beicinho para tristeza.

Amiga que é amiga tem mais do que segredos e confidências. Tem uma intimidade que não se tem com qualquer um. Uma coisa de olhar nos olhos e saber o momento certo de abraçar, do jeito de dar um puxão de orelha com cuidado para não magoar e com o zelo de quem não que a amiga se machuque. A Ninna tinha muito dessas coisas de saber o tempo das coisas. A Leila, não.

O forte da Leila era falar. Nunca vi alguém abrir a boca pra falar um “se” e despejar tantas coisas. E no final, e a Ninna sempre repetia isso, a Leila acabava, depois de voltas e voltas, chegando à resposta que as duas procuravam. E era tudo tão simples, numa conversa calma, com ponderações e hipóteses, e no final, a grande resposta, o suspiro de alívio e o fim das dúvidas.

E as lágrimas, vezes salgadas e vezes doces, brindavam a amizade. Porque lágrima embriaga de felicidade, lava a alma e limpa o olhar. E porque para chorar na frente de alguém é preciso coragem, intimidade e confiança.

Choraram quando a Ninna não sabia mais o que queria da vida. Choraram quando ela descobriu que queria o que tinha, mas de um outro jeito. Choraram pelo telefone quando a Leila perdeu alguém que amava no mesmo dia em que a Ninna estava de aniversário. Choraram quando viram o Paul McCartney. Quando a Ninna se formou. Aquela vez em que viram a Torre Eifel do alto do Arco do Triunfo. E várias outras vezes, no final de um filme, no fim de uma piada.

E o choro da Ninna, emendado com o da Leila, tinha hora e local. No sofá preto do trabalho. No carro da Leila, antes do cinema. No banco de madeira branco em frente ao prédio da Ninna.

E o pacto de lágrimas da Ninna e da Leila é sem fim. Enquanto tiverem motivos para chorar sorrindo e lágrimas para serem derramadas. Porque sempre haverá uma mão direita para impedir que a gota chegue ao chão.

sábado, 16 de julho de 2011

Safári

Meu computador deu pau essa semana. Solução, usar o da Laura. Nunca achei que aquela guria baladeira, que vai do Luan Santana ao Raça Negra gostava tanto de animais. Aconteceu que a Laura não é lá um dos gênios da informática. Excluir o histórico de sites visitados, então, acho que ela nunca ouviu falar.

A Laura senta em uma mesa em frente a minha. Chega cedo e vai embora cedo. Logo, o Mac vaga e fica só pra mim. Isso enquanto o meu é revirado do avesso pelos técnicos do help desk.

Tá eu já tinha notado um bibelô com um casalzinho de porcos em cima da mesa. Num folder da CVC com roteiros sobre a África. Mas agora, acessar mais de 30 páginas no dia só sobre animais, e feras, e casos de acidentes em safáris é um pouquinho de mais.

Na quarta-feira, quando cheguei, lá estava ela falando pra Carla sobre um documentário que tinha visto sobre ataque dos leões num desses canais da TV a Cabo. Monotemática a Laura nos últimos dias. E eu, que não me aguento de tão curiosa, resolvi perguntar.

- Safári na África nas próximas férias? Tá podendo, hein amiga?

- Que nada. É uma pesquisa só.

- Pesquisa?

E a Laura desandou a chorar. Do nada. Como se a minha pergunta tivesse feito detonar uma bomba nuclear.

Meio desorientada, levantou da cadeira e tentando despistar, pegou o celular e saiu porta fora da sala. Ninguém mais do escritório, onde trabalham 27 pessoas que fingem estar atarefadas, notou.

Claro que eu fui atrás e nem precisei procurar muito. Entrei no banheiro feminino e ouvi um soluço. Das quatro portas, a última estava entreaberta e era de lá que vinha o som. Bati e chamei por ela. O soluço aumentou.

- Olha Laura, desculpa perguntar sobre a tua pesquisa. Ai guria, fiquei em sentindo super mal. Tem algo que eu possa fazer?

- Tem – disse ela, abrindo a porta, já com os olhos inchados e um pedaço de papel higiênico com o qual ela limpava o rímel borrado.

Qual não foi a minha surpresa quando ela disse que precisava desabafar. Nunca fomos além de colegas de trabalho, que saem vez na vida outra na morte pra um happy hour e que se tratam cordialmente. Mas achei que devia ouvir. Um pouco de solidariedade feminina sempre ajuda.

- Não é férias – tentou dizer entre um soluço e outro.

Quando o choro dava uma pausa, Laura conseguia falar. E não ter falado antes era o grande problema.

A Laura tinha um ex. Um ex com o qual ela se comunicava eventualmente. Um ex que ainda despertava nela o que havia de melhor e o de pior. O fim foi trágico, longo e, pior, tinha idas e vindas eventuais quando ele dava as caras na cidade. Do namoro de dois anos ficaram vários amigos em comum, uma afilhada, um carinho pela mãe dele (que ela ainda chamava de sogra) e uma saudade.

Seis meses depois do fim, a Laura decidiu ir em frente. Cortou contatos com ele. Mas como o destino insistia em pregar peças, volta e meia eles se encontravam. E tudo voltava a ser, por algumas horas, como tinha sido antes. E num piscar de olhos, as brigas recomeçavam e cada um ia para o seu canto.

- Sabe duas pessoas que se amam, mas que de tão parecidas não se suportam e não conseguem ficar nem juntas nem separadas?

Só me restou balançar a cabeça dizendo que sim, mas eu não sabia. Estava mais interessada que ela continuasse contando a história.

Há seis meses, pela melhor amiga dela, a Laura soube que o Fabiano estava partindo pra Belo Horizonte. Ia trabalhar lá.

- Era o sonho da vida dele – disse ela, caindo no choro de novo.

Consegui convencer a Laura a lavar o rosto, respirar e só então continuar.

- Ele sempre disse que queria. Era o momento mais esperado da carreira dele e ele não dividiu comigo.

A queixa dela era não fazer parte. Não ter ficado nem a amizade que eles tinham e que funcionava bem. Por seis meses ela suportou a ausência, as notícias contadas pelos amigos, a saudade. A vida andou, a Laura disse que ficou com outros caras, mas não esquecia o Fabiano. Mas longe, doía bem menos. Até terça-feira passada.

- A mãe dele me ligou. Me chamou para ir lá e depois de duas canecas de chá me contou que ele estava indo para a África e que ela não sabia como ficar tão longe do filho – soluçou Laura, pausadamente cada uma das palavras.

Então, os acidentes com carros de safári, leões que devoram turistas, epidemias, girafas e elefantes tomaram conta do computador dela. Da vida dela. Laura respirou fundo. E depois em olhou nos olhos, segurou as minhas mãos e sem derramar uma única lagrima disse:

- Fátima, nunca deixe de dizer a alguém que você a ama. Nunca deixei de dizer que você se importa com ela, nunca deixe que ela parte sem saber o quanto você se importa. Por mais que doa dizer, diga.

Daí eu me assustei.

Será que o cara tinha morrido nunca acidente desses em jipe, ou que um bicho tinha feito dele pedacinhos ou que tinha pego uma doença que lhe daria pouco mais de um mês de vida. Mas não.

O Fabiano nem havia embarcado. Ou se o tivesse feito, estava sobrevoando o oceano Atlântico. E a Laura ali sofrendo por não ter tido a coragem de dizer a ele o que me pareceu tão simples.

Ela se levantou. Foi até a pia. Olhou-se no espelho. Lavou o rosto. Secou os olhos para não deixar a maquiagem borrada. E sorriu timidamente. E antes de sair porta a fora, olhou de volta pra mim e arrematou:

- E nunca deixe ao menos desejar uma boa viagem, para que ao menos ele saiba que tu ainda te importa com ele.

Sabe-se lá que selva os esperava.

domingo, 10 de julho de 2011

Meditação

Das 24 horas do dia, pode contar, a Amanda passa pelos menos duas em frente ao espelho. E olha que não é por vaidade.

Na adolescência foi bem mais tempo. Batia o sinal do recreio e ela corria para o banheiro para se olhar. E ajeitava o cabelo. E mudava o tique-taque. E retocava o gloss. O rabo de cavalo da manhã, se transformava em trança em minutos, enquanto as amigas devoravam um cachorro-quente no banco ao lado do ginásio da escola.

A Amanda tinha motivo pra ser assim. Tinha um espelho de dois metros de altura no corredor da casa dela. Era quase que uma parada obrigatória entre o quarto e sala. Nas noites em que as gurias se reuniam para sair, o ponto de encontro era a casa da Amanda. Não tinha secador, chapinha ou rímel mais concorrida do que o espelho do corredor.

Houve um tempo em que a Amanda botou na cabeça que estava viciada na própria aparência. Mandou tirar os espelhos de casa e foi fazer terapia. Adiantar, adiantava. Mas só nos dias em que ela ficava em casa, trancada. Era sair do apartamento e perseguição começava. No elevador, no hall do prédio, no retrovisor de um carro, na fachada de uma vitrine. Tudo refletia a imagem dela. Um terror pra quem achava que nada combinava com nada, que tinha que perder uns seis quilinhos e pra quem nunca tinha certeza de ter feito a escolha certa ainda sob efeito do sono.

No fim, Amanda se rendeu e o espelho venceu. Trouxe de volta os conselheiros emoldurados para o banheiro, sala e quarto do apartamento do Bom Fim. O de aumento, que grita as verdades voltou a bolsa. Largou a terapia e parou de dar ouvidos as amigas que pouco refletiam sobre suas próprias vidas.

Afinal, mesmo cruel, o espelho nunca mente. Nunca diz que você está magra se você não está. Não diz que o cabelo não tem frizz quando ele tem frizz. Por mais que doa, ao menos, ele é honesto. Nós é que nem sempre somos.