segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Passo

Não havia mais espaço. Nem sequer um mísero milímetro do roupeiro da Joana que não estivesse ocupado. De salto. Bico fino. Sapatilhas. Botas.

Todas as tendências dos últimos dez verões e invernos dos tamanhos 35 e 36. Todos os materiais possíveis e das cores mais inimagináveis. Todos. Guardados um a um, numa bagunça organizada e que só a Joana entendia.

E cada um tinha uma história, uma razão. Do primeiro salto, uma sandália bege com as tiras envernizadas que ela usou na primeira festa de 15 anos que foi até o scarpin de cetim com mega laço no calcanhar que ela comprou para o chiquérrimo casamento de uma amiga.

Alguns, coitados, eram de dia a dia. Batidos, surrados, meio sujos, maltratados. Mas eram fiéis. Joana sabia que a sapatilha preta ia bem com jeans azul e que podia seguir da manhã de trabalho ao happy hour com as amigas sem calos, bolhas ou qualquer constrangimento que o sapato errado, na hora errada, podia causar.

Havia alguns, que ficavam no canto esquerdo do roupeiro, mesmo lado dos pijamas, que nunca haviam visto a cor da calçada da Rua da República. Eram daqueles de ficar em casa, meio quebra galhos, que a gente cata quando não tem mais nada pra calçar ou quando o frio é muito e o conforto pouco. Ë pouso certo.

Mas a Joana tinha um par de sandálias. Salto médio, com um desenho estranho, daqueles que parecem que foram feitos para cair. Tinha duas tiras de um couro macio. Um lado era azul. Outro rosa. Comprou num verão alegre, um verão inesquecível, cheio de novidades e do qual ela guardava lembranças ótimas.

Aquele par colorido tinha dado bordejos por Copacabana, tinha estado no Municipal do Rio e voado de volta pra casa. Também tinha passeado da calçada da fama aos botecos da Lima e Silva.

Era macio, confortável e seguro como todo calçado deve ser. E Joana, fanática que era por seus pares, sabia que calçado assim não se acha todo dias.

Até um dia que, caminhando por uma daquelas ruas cheias de verde do Moinhos, o sapato começou a machucar. Primeiro um vermelho nos dedos, depois um corte no calcanhar. A Joana tascou um band-aid, mas não adiantou. Parecia que quanto mais andava, entre o consultório do médico e o café onde iria encontrar a Natália, mais doía.

E bastou entrar no café que a sandália se rasgou. Um pé, o esquerdo. A tira arrebentou, sem conserto. A Natália, ao ver o desespero da Joana, tentou amenizar. Quem sabe transformar a sandália num tamanco, quem sabe virar um sapato ocasional, a última escolha.

Joana saiu dali com os chinelos que tinha na mochila e que só calçaria na academia, entre o vestiário a piscina. Foi pra casa de chinelos.

Ao chegar, como numa solenidade presidencial, abriu o roupeiro de mogno, puxou a gaveta dos calçados e guardou a sandálias. Se deu ao trabalho de, antes mesmo de trocar o band-aid, pegar um pano limpo, macio e úmido e limpar o par. Parecia novo, não fosse a tira arrebentada. Ficaria ali, junto de um par de botas de bico fino e salto Anabela e uma sapatilha areia. Todos danificados por algo que ela não sabia explicar, mas que foram úteis e companheiros. Guardados no mausoléu do roupeiro, apenas com uma única utilidade: lembrá-la que as solas gastas valeram cada passo dado.