Janete sempre ia ao supermercado no final da tarde. Há 12 anos o mesmo ritual. E nem tinha cartão de fidelidade. - É para pegar o pão quentinho – dizia às vizinhas.
Era terminar a sessão da tarde que Janete corria para o chuveiro. Depois do banho, com direito a shampoo importado e sabonete de erva doce, secava os cabelos e as dobrinhas do tempo com cuidado. Vestido envelope – um entre os 28 que tinha no roupeiro, todos feitos por ela na antiga máquina de costura Singer – maquiava-se e perfumava-se. Pronto, agora era pegar Carlinhos pelo braço e sair porta a fora. Estava cumprida a primeira parte do ritual. E era uma pernada da casa de Janete até o supermercado do bairro.
Janete, já tinha entrado na idade dos “enta” fazia tempo. Vinte e cinco anos na verdade. E como se dizia no tempo dela, ainda dava um caldo. Tinha criado dois filhos sozinhos. Um engenheiro. O outro professor. E desde que trocou o escritório de contabilidade pela casa com horta e varada com que sempre sonhou, cuidava do neto em tempo integral.
Carlinhos tinha três anos. O docinho da vovó. Cabelos encaracolados, loirinho, sapeca. Tinha uma mania irresistível: abrir as gavetas dos armários de Janete. Todas. Uma a uma. E, claro, deixá-las abertas. O salário de professor do pai e o de recepcionista de hotel da mãe não era suficiente para a creche. “A vovó cuida.” E cuidava bem. Das 24 horas do dia, Janete dedicava dez aos braços de Morfeu, dez para o neto, três para as novelas e o jornal e uma para o pão.
As vizinhas nunca entendiam por que Janete não fazia rancho como todas as outras.
- Eu não tenho carro para trazer o rancho – argumentava.
- Mas o mercado entrega – respondia Linor, a vizinha de porta que não tirava um velho lenço da cabeça na vã intenção de cobrir os cabelos brancos.
- Indo todo o dia eu aproveito as promoções – insistia.
- E gasta sola de sapato e tempo. Bem que tu podias fazer um rancho uma vez só no mês e vir tomar um chimarrão comigo todas as tardes – tentava Linor.
- Todas as tardes? Para que? – questionou Janete. - Para conversar, ora. - Até parece que a gente tem tanto assunto assim – disse Janete, dando a conversa por encerrado.
E Linor e todas vizinhas já sabiam o horário. Ficavam nas janelas de casa à espreita de Janete. Uma chegou a comprar walktalks para se falarem e comentarem as saídas diárias de Janete, sempre antes do por do sol.
E antes que o jornal local começasse, ela voltava. Numa mão Carlinhos, ora chorando de manha, ora de sono. Na outra as sacolas. E o cheiro do pão invadia a rua, e as casas. Era mais forte que o da curiosidade alheia.
- Dona Janete, que bom vê-la aqui. Tenho uma surpresa para a senhora – disse Luiz ao vê-la entrar pela porta do mercado naquele dia de chuva com o Carlinhos encharcado e ela mais ainda.
- Vim buscar o pão. Saiu a fornada das seis?
- Saiu sim. E eu pedi para guardarem os mais moreninhos para a senhora. Sei que gosta dos mais torradinhos – completou o gerente alisando o bigode como se pudesse colocar cada fio no seu devido lugar.
E o pão era só o começo. Porque a lista de compras nunca tinha um item sem só. Janete ficava horas pensando no que faltava em casa. E quando nada parecia faltar, era um tal de catar produto vencido no supermercado para passar sermão em Luiz, inventar uma fruta fora da estação para que ele providenciasse, falar do tempo, da notícia do jornal, das artes do Carlinhos. A lista de Janete nunca faltava um item: assunto.
Em mais uma tarde de compras como qualquer outra Janete enumerava. Patê, papel higiênico, detergente, caixa de ovos. Enfim, a fila do pão. E nada do gerente aparecer.
- O seu Luiz não veio hoje? – perguntou para a moça da friamberia que embalava os 155g de queijo prato que Janete havia pedido.
- Veio sim. Está no depósito recebendo uma mercadoria. Vou pedir para chamá-lo para a senhora – disse a atendente que naquele momento tentava abrir, com ajuda do indicador e do polegar, o saco plástico – Só vou embalar o pão antes.
E enquanto Janete observava o modo como a moça, novata no ofício de embalar pães, selecionava os que ela levaria para casa, surge Luiz por trás daquela cortinha de tiras largas e duras de plástico transparentes do fundo do açougue. Ainda limpando as mãos viu Janete no balcão. E foi tarefa para um relâmpago trazê-la de volta a Terra.
- Dona Janete, que prazer. Nosso dia não é completo sem a sua visita.
- Que isso. O senhor que é muito gentil. Eu queria lhe perguntar. O Carlinhos viu na televisão a propaganda de um salgadinho novo e não achei na prateleira.
- A senhora me diga qual é que eu mando providenciar. - Pode deixar. Da próxima vez que o comercial passar na televisão, eu anoto o nome.
E enquanto Janete e Luiz tramavam uma extensa conversa sobre o mundo dos salgadinhos e seus sabores e aromas, o mundo caía lá fora, o neto corria pelos corredores de produtos de higiene e o pão esfriava.
- Mãe, porque a senhora sai sem celular. Tive que sair na vizinhança perguntando pela senhora e pelo Carlinhos. As vizinhas me disseram que, com certeza, a senhora estava aqui. Vamos, está desabando um temporal – disse o filho professor, pai de Carlinhos, que como fazia desde pequeno gostava de chegar sorrateiro e pegar de susto a todos que não o aguardavam nem sequer sonhavam com a sua presença ali.
- Meu filho, onde está a sua educação? Dê boa tarde para o seu Luiz, o dono do supermercado.
- Boa tarde, seu Luiz – disse o filho estendendo a mão para cumprimentar aquele senhor estranho de gravata verde.
- Boa tarde. Você deve ser o Josué? O pai do Carlinhos. Sua mãe fala muito em você – comentou Luiz, dando uma piscadinha discreta para Janete.
Mais vermelha que a massa de tomate que estava no cestinho de compras, Janete nem respondeu.
- Dona Janete, seu pão – disse a atendente da padaria, alcançando a sacola com seis pãezinhos, com o braço dormente de tanto esperar por uma pausa entre a prosa de Janete e Luiz.
- Pão? – disse o filho.
- Sim! Pão tem que ser quente, fresquinho e tem que buscar todo o dia, não é? - respondeu Janete, arrancando o filho de perto do gerente
– Vamos! Se tu quer ir vamos. O vermelho de vergonha se transformou em vermelho de raiva.
Pagou a conta. R$ 37,55. Pegou o troco e saiu com o neto pela mão. Dessa vez o filho levava as sacolas. No carro, um silêncio ensurdecedor. Em casa, Janete guardou as compras enquanto Josué jogava bola com Carlinhos no meio da sala, quebrando as regras de infância e um vaso de vidro colorido. Suado, cansado, o filho entrou na cozinha. Na geladeira pegou uma garrafa de água, serviu, e antes de beber sentou-se à mesa. E lá estava a sacola de pão. Ainda quente, suando tanto quanto Janete que a essa altura do campeonato já sabia que teria que responder ali a pergunta fatal.
- O que a senhora vai fazer com isso? – disse o filho apontando para o saco de pão - E a sua alergia a trigo e glúten? Tá querendo baixar hospital de novo?