quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Retornável

Se dependesse da Nanda, o suporte de copos descartáveis da sala de espera do escritório já estaria zerado faz horas. Era passar pela porta para receber uma encomenda, atender um cliente, e lá ia ela pegar mais um.

Aquele barulho meio estridente dos copos de plástico se soltando um do outro irritava a Flávia. Afinal, era ela quem passava oito horas do dia atrás daquele balcão, atendendo telefone e recebendo os motoboys. Tinha um tique nervoso por causa do som dos copos.

A agonia da Flávia com aquele som e o curto tempo de vida dos copos de plástico branco fez com que no Natal passado ela desse para todos os 18 colegas do escritório uma daquelas canecas de R$ 1,99. Antes do Ano-Novo já haviam virado porta-clips, porta-caneta e até vaso de flor.

A Flávia já tinha sugerido que cada um só pudesse pegar um copo por dia. Que o plástico branco usado para não mais de 100 mililitros de água fosse reutilizado durante o dia. Em vão.

Seis passos da porta, um clique para tirar dois copos, porque eles sempre insistem em vir em par, dois segundo para devolver um para a pilha, mais 15 para enchê-lo de água gelada ou morna. Dois goles. E a cena se repetia ao menos 54 vezes ao dias úmidos e 162 nos dias mais secos do verão. A Flávia contava.

Na semana passada a paciência da Flávia se esgotou quando a funcionária da limpeza, fofoqueira que só ela, a chamou até a mesa da Nanda. Fofoca pura. Festa a Flávia contar quantos copos plásticos havia sobre a mesa, empilhados e secos, entre o computador e os post-it amarelos: 13.

Quando a Nanda chegou para trabalhar e foi direto a bombona de água antes mesmo de largar a bolsa e tirar os óculos de sol, a Flávia esbravejou:

- Parou, parou, parou!

- O que foi?

- Tu não toca em mais nenhum copo aí. A dona Zair, da limpeza, me mostrou a coleção de copos descartáveis que tu tem na tua mesa. Pega um de lá. Não vai pegar novo.

- Vou sim.

- Porque cargas d’água vocês não usam as canecas que eu dei? Copos de plástico são descartáveis, poluem, e ficar pegando um de cada vez não é bom.

- Agora tu vai regular os copos também? São descartáveis, são feitos para serem usados e jogados fora. É pra isso que servem, pra esse pequeno momento de matar a sede. Feita a tarefa, lixo.

- E porque não jogou aqueles 13 fora, hein Nanda?

- Porque me afeiçoei. Nem todo copo descartável a gente joga fora. Nem toca neles. Deixa eles lá. Bem quietinhos. Quando desafeiçoar, eu jogo fora.

- Tu tá louca, ?

E Nanda, sem nem dar as horas, levou a mão direita ao tubo transparente que guardava os copos novos.

- Tu não vai pegar um novo, vai?

- Só mais um para coleção! Depois boto fora. Prometo. Nada de caneca. Nada de lavar e cuidar para não quebrar.

E lá se foi a Nanda, com a sede saciada.

E lá ficou a Flávia, seca de ódio e agarrada na caneca de bolinhas marrom e bege que custou R$ 2,50.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Passo

Não havia mais espaço. Nem sequer um mísero milímetro do roupeiro da Joana que não estivesse ocupado. De salto. Bico fino. Sapatilhas. Botas.

Todas as tendências dos últimos dez verões e invernos dos tamanhos 35 e 36. Todos os materiais possíveis e das cores mais inimagináveis. Todos. Guardados um a um, numa bagunça organizada e que só a Joana entendia.

E cada um tinha uma história, uma razão. Do primeiro salto, uma sandália bege com as tiras envernizadas que ela usou na primeira festa de 15 anos que foi até o scarpin de cetim com mega laço no calcanhar que ela comprou para o chiquérrimo casamento de uma amiga.

Alguns, coitados, eram de dia a dia. Batidos, surrados, meio sujos, maltratados. Mas eram fiéis. Joana sabia que a sapatilha preta ia bem com jeans azul e que podia seguir da manhã de trabalho ao happy hour com as amigas sem calos, bolhas ou qualquer constrangimento que o sapato errado, na hora errada, podia causar.

Havia alguns, que ficavam no canto esquerdo do roupeiro, mesmo lado dos pijamas, que nunca haviam visto a cor da calçada da Rua da República. Eram daqueles de ficar em casa, meio quebra galhos, que a gente cata quando não tem mais nada pra calçar ou quando o frio é muito e o conforto pouco. Ë pouso certo.

Mas a Joana tinha um par de sandálias. Salto médio, com um desenho estranho, daqueles que parecem que foram feitos para cair. Tinha duas tiras de um couro macio. Um lado era azul. Outro rosa. Comprou num verão alegre, um verão inesquecível, cheio de novidades e do qual ela guardava lembranças ótimas.

Aquele par colorido tinha dado bordejos por Copacabana, tinha estado no Municipal do Rio e voado de volta pra casa. Também tinha passeado da calçada da fama aos botecos da Lima e Silva.

Era macio, confortável e seguro como todo calçado deve ser. E Joana, fanática que era por seus pares, sabia que calçado assim não se acha todo dias.

Até um dia que, caminhando por uma daquelas ruas cheias de verde do Moinhos, o sapato começou a machucar. Primeiro um vermelho nos dedos, depois um corte no calcanhar. A Joana tascou um band-aid, mas não adiantou. Parecia que quanto mais andava, entre o consultório do médico e o café onde iria encontrar a Natália, mais doía.

E bastou entrar no café que a sandália se rasgou. Um pé, o esquerdo. A tira arrebentou, sem conserto. A Natália, ao ver o desespero da Joana, tentou amenizar. Quem sabe transformar a sandália num tamanco, quem sabe virar um sapato ocasional, a última escolha.

Joana saiu dali com os chinelos que tinha na mochila e que só calçaria na academia, entre o vestiário a piscina. Foi pra casa de chinelos.

Ao chegar, como numa solenidade presidencial, abriu o roupeiro de mogno, puxou a gaveta dos calçados e guardou a sandálias. Se deu ao trabalho de, antes mesmo de trocar o band-aid, pegar um pano limpo, macio e úmido e limpar o par. Parecia novo, não fosse a tira arrebentada. Ficaria ali, junto de um par de botas de bico fino e salto Anabela e uma sapatilha areia. Todos danificados por algo que ela não sabia explicar, mas que foram úteis e companheiros. Guardados no mausoléu do roupeiro, apenas com uma única utilidade: lembrá-la que as solas gastas valeram cada passo dado.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Lição de casa

A Mariana nunca acreditou naquela história de príncipe encantado, cavalo branco e outras coisas que contam para meninas. Bem pelo contrário. Cada vez que o seu Paulo engatava um "era uma vez", a Mariana virava para o lado e dizia:

– Se é pra contar essas histórias deixa que eu durma sozinha, pai – e botava o seu Paulo para correr.

E desde que a Mariana aprendeu a ler, nunca mais conseguiram contar histórias de princesas que dormiam por anos, ou que era escravizada por meias-irmãs malvadas. A Mariana era prática. Trocava as Barbies facilmente pelos kits de ciência e de blocos de montar.

O sonho dourado da Mariana não era um vestido de babados bem rodado, acompanhado de uma coroa de cristais. Era um bichinho de estimação. Mas não podia ser um cachorro meigo ou um gato preguiçoso. Precisava ser um bicho estranho. Servia para botar medo nos irmãos e nas patricinhas da terceira série.

Um dia, a professora Marta entrou na sala com uma pilha de livros e um pote de margarina. A professora Marta era tipo uma tia daquelas que todo mundo tem. Era alta, mais velha que a mãe da Mariana e usava um coque. Todos os dias o mesmo coque. A saia de prega marrom e as camisas estampadas com flores nunca deixavam que o outono baixasse sobre a sala de aula. E a professora Marta sabia como cativar a gurizada.

A Mariana adorava a Marta. Não era pelas lições de matemática explicadas com palitos de fósforo nem pelas aulas de desenho em que era permitido se sujar, sujar os colegas e o que mais se visse pela frente. Era pelas aulas de ciência.

– Profe, o que tem no pote de margarina?

– Te acalma Mariana. Senta lá na tua classe. Na hora certa vocês vão saber.

– Mas profe, eu queria ver.

– Se quer ver, porque está com os dedinhos na tampa. Ou a senhorita tem olhos nas pontas dos dedos?

Mariana olhou para as pontas dos dedos com atenção. E foi tempo suficiente da professora tirar o pote do alcance das mãos mais curiosas da sala de aula.

O sinal já estava quase batendo para o recreio quando a professora anunciou:

– Depois do recreio, vou contar para vocês como nascem os sapos.

Para quê? Foi o mesmo que dizer para a Mariana nem sair da sala. Na verdade, Marta teve que empurrar a menina para o pátio da escola enquanto fechava a porta. E menos de 18 minutos depois, antes de o sinal bater, lá vinha ela pulando no corredor, balançando o rabo de cavalo. Meio que disfarçando a ansiedade, meio que preparando uma das suas.

E quando a Marta voltou para abrir a sala, a Mariana estava colada na porta. E foi a primeira a se ajeitar na classe.

– Crianças, hoje a gente vai conhecer como nascem os sapos. Aqui nesse pote eu tenho um girino. Vocês sabem o que é um girino?

– É um bebê sapo? – respondeu Mariana antes mesmo que a professora dissesse "levante a mão quem sabe".

– Isso mesmo – completou Marta abrindo o pote de margarina.

Lá dentro, um girino minúsculo se movimentava numa ansiedade maior que a da Mariana.

Depois de explicar como aquela larva se transformaria num sapo a Marta sugeriu:

– Lembram quando o Felipe levou para casa a sementinha do feijão plantada no algodão? Pois agora, um de vocês vai receber a missão de cuidar do sapinho. Quem quer?

E a Marta nem tinha terminado de falar e a Mariana já tinha gritado:

– Eu!

E lá se foi a Mariana pra casa no final daquela tarde de abril com o pote de margarina nas mãos.

– Filha, o que é isso? Que pote é esse?

– É o Leco.

– Leco?

– É mãe, meu girino.

– Que história é essa?

– Mãe, tu e o pai sempre disseram que a gente não podia ter um bichinho de estimação aqui em casa porque não temos espaço, porque o mano tem alergia e porque vocês é que acabariam cuidando. Então, a professora Marta levou o girino pra aula e deu pra quem quisesse cuidar. E eu quero, mãe. Deixa, deixa? Eu até já dei nome pra ele, vai ser Leco.

A dona Joana não teve como dizer não. E lá saiu a Mariana, de uniforme da escola com o girino no pote de margarina.

Durante duas semanas ela alimentou a larva com pedacinhos de pão, apresentou ele para os vizinhos do prédio e até cantava músicas de ninar.

Seu Paulo e a dona Joana só pensavam o que iria acontecer quando o bicho crescesse e virasse um sapo gordo, meio gosmento. Era fatal que a Mariana perderia o interesse a abandonaria o bichinho. Foram muitas conversas até convencer a Mariana de que o melhor seria levar o Leco para perto dos seus. Libertá-lo no lago do parque perto de casa para que crescesse no seu ambiente natural. Dois meses depois, convenceram a menina.

E num domingo de sol, como quem leva um parente na rodoviária, Mariana e seu Paulo saíram com o pote de margarina para devolver o Leco para casa dele. A menina voltou chorando e com a promessa de poderia voltar lá a hora que quisesse para conversar com o girino.

Os anos passaram, a Mariana cresceu, voou as tranças e nunca esqueceu o Leco. O seu único bichinho de estimação. Veio o trabalho, os namoros, um noivado desfeito e uma grande reforma no edifício de apartamentos onde sempre morou.

Eis que um dia, enquanto tirava a roupa do varal da janela da lavanderia, a campainha tocou. Resultado: um prendedor de roupa a menos no cesto, um a mais na horta do seu Carlos.

– Pronto – disse Mariana abrindo a porta.

Do lado de fora, no corredor do oitavo andar, estava um rapaz alto, ruivo, de olhos verdes arregalados, bem vestido e com um bilhete nas mãos.

– O seu Paulo ainda mora aqui?

– Mora sim, por quê?

– Faz muito tempo que eu estive aqui. Ele está? Posso falar com ele?

– Ele está trabalhando. Quem é você?

– Eu sou o Leco.

– Pode entrar, por favor.

E desde então a Mariana tirou os livros das caixas e colocou em estantes, os de contos de fadas com destaque. Na dúvida, dizia ela, não custa acreditar.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Sereno

A lágrima escorria do olho esquerdo e corria pelo rosto. Mais rápida que ela só a mão direita da Ninna que amparava a gota antes que chegasse ao queixo. Depois da quinta lágrima, a Ninna desistia de secar o rosto da amiga.

De olhar, foi paixão a primeira vista. Parece que estava escrito no caderno de tarefas do destino “em 2008, apresentar a Ninna para a Leila”. E foi assim que aconteceu. Pareciam duas irmãs que tinham sido separadas no parto. E a Leila nem precisava que a gravidade fizesse com que aquela montoeira de lágrimas despencasse. Antes que os olhos ficassem mais inundados que a Ilha Grande dos Marinheiros depois de três dias de chuva e vento sul, uma já sabe o que se passava com a outra.

Só de ver o brilho diferente no olho da Ninna, a Leila já sabia.

- Ele ligou, né? Não mente. To vendo nos teus olhos.

Nem precisava de resposta.

A Ninna decorou os suspiros da Leila. Mais longos para paixões, rápidos para o estresse, com balanço de ombros para cansaço e beicinho para tristeza.

Amiga que é amiga tem mais do que segredos e confidências. Tem uma intimidade que não se tem com qualquer um. Uma coisa de olhar nos olhos e saber o momento certo de abraçar, do jeito de dar um puxão de orelha com cuidado para não magoar e com o zelo de quem não que a amiga se machuque. A Ninna tinha muito dessas coisas de saber o tempo das coisas. A Leila, não.

O forte da Leila era falar. Nunca vi alguém abrir a boca pra falar um “se” e despejar tantas coisas. E no final, e a Ninna sempre repetia isso, a Leila acabava, depois de voltas e voltas, chegando à resposta que as duas procuravam. E era tudo tão simples, numa conversa calma, com ponderações e hipóteses, e no final, a grande resposta, o suspiro de alívio e o fim das dúvidas.

E as lágrimas, vezes salgadas e vezes doces, brindavam a amizade. Porque lágrima embriaga de felicidade, lava a alma e limpa o olhar. E porque para chorar na frente de alguém é preciso coragem, intimidade e confiança.

Choraram quando a Ninna não sabia mais o que queria da vida. Choraram quando ela descobriu que queria o que tinha, mas de um outro jeito. Choraram pelo telefone quando a Leila perdeu alguém que amava no mesmo dia em que a Ninna estava de aniversário. Choraram quando viram o Paul McCartney. Quando a Ninna se formou. Aquela vez em que viram a Torre Eifel do alto do Arco do Triunfo. E várias outras vezes, no final de um filme, no fim de uma piada.

E o choro da Ninna, emendado com o da Leila, tinha hora e local. No sofá preto do trabalho. No carro da Leila, antes do cinema. No banco de madeira branco em frente ao prédio da Ninna.

E o pacto de lágrimas da Ninna e da Leila é sem fim. Enquanto tiverem motivos para chorar sorrindo e lágrimas para serem derramadas. Porque sempre haverá uma mão direita para impedir que a gota chegue ao chão.

sábado, 16 de julho de 2011

Safári

Meu computador deu pau essa semana. Solução, usar o da Laura. Nunca achei que aquela guria baladeira, que vai do Luan Santana ao Raça Negra gostava tanto de animais. Aconteceu que a Laura não é lá um dos gênios da informática. Excluir o histórico de sites visitados, então, acho que ela nunca ouviu falar.

A Laura senta em uma mesa em frente a minha. Chega cedo e vai embora cedo. Logo, o Mac vaga e fica só pra mim. Isso enquanto o meu é revirado do avesso pelos técnicos do help desk.

Tá eu já tinha notado um bibelô com um casalzinho de porcos em cima da mesa. Num folder da CVC com roteiros sobre a África. Mas agora, acessar mais de 30 páginas no dia só sobre animais, e feras, e casos de acidentes em safáris é um pouquinho de mais.

Na quarta-feira, quando cheguei, lá estava ela falando pra Carla sobre um documentário que tinha visto sobre ataque dos leões num desses canais da TV a Cabo. Monotemática a Laura nos últimos dias. E eu, que não me aguento de tão curiosa, resolvi perguntar.

- Safári na África nas próximas férias? Tá podendo, hein amiga?

- Que nada. É uma pesquisa só.

- Pesquisa?

E a Laura desandou a chorar. Do nada. Como se a minha pergunta tivesse feito detonar uma bomba nuclear.

Meio desorientada, levantou da cadeira e tentando despistar, pegou o celular e saiu porta fora da sala. Ninguém mais do escritório, onde trabalham 27 pessoas que fingem estar atarefadas, notou.

Claro que eu fui atrás e nem precisei procurar muito. Entrei no banheiro feminino e ouvi um soluço. Das quatro portas, a última estava entreaberta e era de lá que vinha o som. Bati e chamei por ela. O soluço aumentou.

- Olha Laura, desculpa perguntar sobre a tua pesquisa. Ai guria, fiquei em sentindo super mal. Tem algo que eu possa fazer?

- Tem – disse ela, abrindo a porta, já com os olhos inchados e um pedaço de papel higiênico com o qual ela limpava o rímel borrado.

Qual não foi a minha surpresa quando ela disse que precisava desabafar. Nunca fomos além de colegas de trabalho, que saem vez na vida outra na morte pra um happy hour e que se tratam cordialmente. Mas achei que devia ouvir. Um pouco de solidariedade feminina sempre ajuda.

- Não é férias – tentou dizer entre um soluço e outro.

Quando o choro dava uma pausa, Laura conseguia falar. E não ter falado antes era o grande problema.

A Laura tinha um ex. Um ex com o qual ela se comunicava eventualmente. Um ex que ainda despertava nela o que havia de melhor e o de pior. O fim foi trágico, longo e, pior, tinha idas e vindas eventuais quando ele dava as caras na cidade. Do namoro de dois anos ficaram vários amigos em comum, uma afilhada, um carinho pela mãe dele (que ela ainda chamava de sogra) e uma saudade.

Seis meses depois do fim, a Laura decidiu ir em frente. Cortou contatos com ele. Mas como o destino insistia em pregar peças, volta e meia eles se encontravam. E tudo voltava a ser, por algumas horas, como tinha sido antes. E num piscar de olhos, as brigas recomeçavam e cada um ia para o seu canto.

- Sabe duas pessoas que se amam, mas que de tão parecidas não se suportam e não conseguem ficar nem juntas nem separadas?

Só me restou balançar a cabeça dizendo que sim, mas eu não sabia. Estava mais interessada que ela continuasse contando a história.

Há seis meses, pela melhor amiga dela, a Laura soube que o Fabiano estava partindo pra Belo Horizonte. Ia trabalhar lá.

- Era o sonho da vida dele – disse ela, caindo no choro de novo.

Consegui convencer a Laura a lavar o rosto, respirar e só então continuar.

- Ele sempre disse que queria. Era o momento mais esperado da carreira dele e ele não dividiu comigo.

A queixa dela era não fazer parte. Não ter ficado nem a amizade que eles tinham e que funcionava bem. Por seis meses ela suportou a ausência, as notícias contadas pelos amigos, a saudade. A vida andou, a Laura disse que ficou com outros caras, mas não esquecia o Fabiano. Mas longe, doía bem menos. Até terça-feira passada.

- A mãe dele me ligou. Me chamou para ir lá e depois de duas canecas de chá me contou que ele estava indo para a África e que ela não sabia como ficar tão longe do filho – soluçou Laura, pausadamente cada uma das palavras.

Então, os acidentes com carros de safári, leões que devoram turistas, epidemias, girafas e elefantes tomaram conta do computador dela. Da vida dela. Laura respirou fundo. E depois em olhou nos olhos, segurou as minhas mãos e sem derramar uma única lagrima disse:

- Fátima, nunca deixe de dizer a alguém que você a ama. Nunca deixei de dizer que você se importa com ela, nunca deixe que ela parte sem saber o quanto você se importa. Por mais que doa dizer, diga.

Daí eu me assustei.

Será que o cara tinha morrido nunca acidente desses em jipe, ou que um bicho tinha feito dele pedacinhos ou que tinha pego uma doença que lhe daria pouco mais de um mês de vida. Mas não.

O Fabiano nem havia embarcado. Ou se o tivesse feito, estava sobrevoando o oceano Atlântico. E a Laura ali sofrendo por não ter tido a coragem de dizer a ele o que me pareceu tão simples.

Ela se levantou. Foi até a pia. Olhou-se no espelho. Lavou o rosto. Secou os olhos para não deixar a maquiagem borrada. E sorriu timidamente. E antes de sair porta a fora, olhou de volta pra mim e arrematou:

- E nunca deixe ao menos desejar uma boa viagem, para que ao menos ele saiba que tu ainda te importa com ele.

Sabe-se lá que selva os esperava.

domingo, 10 de julho de 2011

Meditação

Das 24 horas do dia, pode contar, a Amanda passa pelos menos duas em frente ao espelho. E olha que não é por vaidade.

Na adolescência foi bem mais tempo. Batia o sinal do recreio e ela corria para o banheiro para se olhar. E ajeitava o cabelo. E mudava o tique-taque. E retocava o gloss. O rabo de cavalo da manhã, se transformava em trança em minutos, enquanto as amigas devoravam um cachorro-quente no banco ao lado do ginásio da escola.

A Amanda tinha motivo pra ser assim. Tinha um espelho de dois metros de altura no corredor da casa dela. Era quase que uma parada obrigatória entre o quarto e sala. Nas noites em que as gurias se reuniam para sair, o ponto de encontro era a casa da Amanda. Não tinha secador, chapinha ou rímel mais concorrida do que o espelho do corredor.

Houve um tempo em que a Amanda botou na cabeça que estava viciada na própria aparência. Mandou tirar os espelhos de casa e foi fazer terapia. Adiantar, adiantava. Mas só nos dias em que ela ficava em casa, trancada. Era sair do apartamento e perseguição começava. No elevador, no hall do prédio, no retrovisor de um carro, na fachada de uma vitrine. Tudo refletia a imagem dela. Um terror pra quem achava que nada combinava com nada, que tinha que perder uns seis quilinhos e pra quem nunca tinha certeza de ter feito a escolha certa ainda sob efeito do sono.

No fim, Amanda se rendeu e o espelho venceu. Trouxe de volta os conselheiros emoldurados para o banheiro, sala e quarto do apartamento do Bom Fim. O de aumento, que grita as verdades voltou a bolsa. Largou a terapia e parou de dar ouvidos as amigas que pouco refletiam sobre suas próprias vidas.

Afinal, mesmo cruel, o espelho nunca mente. Nunca diz que você está magra se você não está. Não diz que o cabelo não tem frizz quando ele tem frizz. Por mais que doa, ao menos, ele é honesto. Nós é que nem sempre somos.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Bicho da Goiaba

Ainda bem que a casa está limpa. Se não, as marcas dos chinelos dela bem que poderiam indicar o meu trajeto pela casa. Essa mulher é um grude. Fica o tempo todo atrás de mim. No quatro. Na sala. Na cozinha.
"Seu Carlos, o senhor acha que a estante da TV tá bem limpa?"
"Olha aqui, Seu Carlos, como a prateleira dos livros tá arrumada."
"Não se preocupe que o banheiro e o quarto eu já limpei."
Ainda bem que é uma vez por semana. A gente espera pelo dia da faxina como criança em véspera de Natal. Confesso, não lavo a louça da janta e deixo até as xícaras do café sobre a mesa. O dia da faxina é o meu de folga do avental do churrasqueiro, mais usado com esponja e sabão líquido do que com carvão e sal grosso. Visto mais o avental do que a braçadeira de capitão do time de futebol.
Enfim, a Wera chega cedo, quando a Flávia já saiu para a aula em Sapiranga. Sobra pra mim dar as primeiras ordens da quinta-feira, o dia mais longo da semana. A Flávia escolheu a quinta com a justificativa de que a casa ficaria um brinco até o final de semana. Ela ainda acredita nisso.
- Olha, dona Wera, a Flávia deixou dito que é para a senhora tirar a roupa de cama, tem que dar uma geral lá nos fundos e, se não chover, botar os tapetes pra rua.
- Pode deixar, Seu Carlos. O senhor viu como a casa ficou limpa na semana passada, né?
A Wera é muito carente. Nos dois sentidos.
Mora numa casa pequena, de madeira, com os três filhos menores. Os dois mais velhos já casaram. O marido foi embora faz uns três anos, desde que ela começou a fazer faxina aqui em casa. A Flávia que contratou ela. Eu nem opino, só cumpro ordens.
Outro dia, a Wera encontrou uma goiaba na geladeira. Eu tinha pego no sítio do Pedro Paulo, estavam lindas. Eu adoro goiaba. Quando fui comer, nem sinal do bicho da goiaba tinha. Se tinha, estava no estômago da Wera.
A Wera precisa mais de feedback do que a equipe lá da firma. E parece que o feedback tem que ser sempre meu. Não adianta o elogio da Flávia.
E ela anda atrás de mim pela casa. Não tenho sossego no escritório. E, ainda bem, ela não bateu na porta do banheiro para ver se eu preciso de ajuda ou de mais papel higiênico.
Quando eu termino o trabalho mais cedo e vou para casa, supostamente para descansar, e a Wera está lá, dou um jeito de fugir para a casa da sogra. Antes o silêncio ensurdecedor da dona Palmira e do Waldir, me olhando seco por deitar no sofá da sala enquanto eles olham a novela das seis, do que a matraca da Wera.
Outro dia, decidi encarar a fera, ou melhor, a Wera. Mal cheguei em casa e ela, ajoelhada no chão, com o pano um pano molhado e encardido, limpava a sala.
- Vou tirar os tênis pra não sujar o que a senhora já limpou.
- Ah, mas o senhor não pode entrar agora. Até porque vai andar de pé descalço e o piso tá frio.
- Eu boto o chinelo.
- Ah, não vai dar. Tô usando eles.
Ela adora falar pelos cotovelos, me perseguir pela casa, me acordar quando finjo que estou dormindo ou ficar falando na minha frente quando eu faço de conta que os fones de ouvido do radinho ainda funcionam. Tudo bem, eu entendo. Agora, usar os meus chinelos... Não se acha havaiana de sola branca e tira azul todo dia. Dona Wera foi longe demais.
- Seu Carlos, vou fazer uma pausa agora à tarde para ir tomar chá com a dona Palmira - me disse ela, olhando fundo como se fosse a verdadeira dona da casa.
- Pode ir, dona Wera.
Cinco minutos de paz e silêncio. Mesmo que seja de pés descalços.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Guarda-roupa

Se depender do guarda-roupa, a Lara jamais terá Alzheimer. Abrindo aquelas seis portas dá para saber mais sobre ela do que em álbuns de fotografias, diários, ou ficha policial.
Lara se deu conta disso outro dia. Me parou na rua, enquanto passeava com o cachorro. Nem ligou para as quatro sacolas de compras (pesadas) que eu carregava do súper até em casa. Queria me contar que havia lembrado de uma festa que fomos quando tínhamos 14 anos. Eu confesso que não lembrava.
- Nem eu. Mas o guarda-roupa me lembro – disse a Lara, me fazendo largar as sacolas no chão pra ouvir a história.
A tal memória havia voltado por causa de uma saia de tafetá cinza que eu e ela compramos numa loja de roupas de festa na Rua Muck. A tal loja tinha uma vitrine fantástica. Ampla, colorida, com vestidos que mais pareciam ter saído do tapete vermelho do Oscar, mas que havia sido importadas do Bom Retiro. Ficava em frente a uma papelaria em que íamos sempre. Primeiro porque ficava a duas quadras da escola e segundo por justamente ser em frente à loja.
A saia, manequim 36, que periga ela ainda conseguir vestir, estava guardada, enrolada em um papel de seda, dentro de uma caixa de papel, no fundo do roupeiro.
- Tu lembra como a gente usou aquela saia?
- Mais que o uniforme da escola.
Sim, era uma saia em sociedade.
Naquela época ela servia em todas nós, e a cada festa de 15 anos, ela passava para uma amiga usar. Isso só trocando o corpete, a sandália, a estola. Foi figurino em clube, em churrascaria, em CTG. Dançou É o Tchan, Mila, Dança do Vampiro e outras barbaridades que a gurizada dançava naquelas festas em que não se podia beber e em que todo mundo volta para casa graças à carona do pai de alguém.
A Lara foi enumerando as peças de roupa que tinha achado no armário. O vestido que foi no casamento de uma amiga nossa que recém se separou, o blusão de moletom bege que vestia no dia em que deu o primeiro beijo, uma roupinha de bebê bordada que ela usava e que a mãe guardou.
- Os roupeiros guardam mais segredos sobre nós e contam mais do que a nossa história do qualquer biografia. Quem sabe coisas que, escondidas no fundo do armário, a gente queira mais é esconder - me disse a Lara, me arrastando pelo braço.
Saí dali com as sacolas, devidamente acomodadas no porta-malas do carro da Lara, que ela foi buscar em casa, há duas quadras dali, depois de me convencer a ir com ela escolher um roupeiro novo.
Quer ter onde guardar memórias novas.
Mas jamais se desfazer das antigas. São elas que a fizeram ser louca desse jeito.
Pelo visto ela não costuma fazer muitas doações para a campanha do agasalho.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Gorjeta

"Ele me abandonou. Vai embora pra São Paulo semana que vem e sequer foi capaz de mandar uma mensagem avisando. Onde eu vou arrumar outro cabeleireiro como ele?"
A mulher de casaco de grife soluçava. Eu, uma simples atendente de cafeteria, de longe achei que tinha perdido um parente, que o marido a havia trocado por outra ou que o filho tinha ido morar com a namorada que ela odiava mais que a própria sogra. A gente ouve cada uma.
Estava na mesa 8. Ela e a amiga com luzes nos cabelos tinham saído do salão. A chorona soluçava tanto que mal conseguiu fazer o pedido ao Luiz. Coube à das luzes a tarefa.
"Dois cafés. Só. E rápido."
O Luiz já se afastava da mesa quando a mulher das luzes gritou.
"Moço, traz uma água, sem gás também, por favor."
Dez minutos depois do rivotril e de meia garrafa de água mineral, a chorona tinha parado de chorar e nem havia tocado no café, já frio.
Na mesa 6 um casal discutia a decoração do quarto do bebê. Pela barriga da moça, estavam atrasados, porque era bem possível que o bebê chegasse bem antes dos móveis de Gramado branco e com recortes de ursinho. Quando saíram, sem deixar gorjeta, esqueceram também o rascunho do que parece ser um painel. Lia-se Bernardo e me pareceu uma série de ursos desenhados.
Abri o caderno e guardei no meio das folhas. Se eles voltarem, devolvo.
Minto. Guardo tudo no caderno. Costumo roubar frases. Diálogos perdidos entre um gole de café e outro. Alguns mais vazios que as xícaras que voltam para a cozinha. Faz três anos e cinco meses que trabalho como caixa aqui no café e já preenchi cinco cadernos universitários, daqueles com espirais. No atual, começado em fevereiro, já se foram 30 folhas, frente e verso. Sim, eu tenho um método. Anoto a data, descrevo os clientes e sigo anotando as frases perdidas. Se for homem, faço um triângulo. Se for mulher, um quadrado. Sim, porque as mulheres têm mais lados que os homens.
As crianças são bolinhas. Meninos, bolinhas vazias. Meninas, bolinhas pintadas. Ultimamente tenho visto por aqui mais quadrados e bolinhas pintadas. Em geral, mesas cheias de quadrados e algumas bolinhas pintadas.
Uma das minhas anotações é se fumam. Os clientes sempre pedem cinzeiro quando pedem espresso. Mais quadrados que triângulos. Em geral, no deck e sem bolinhas, nem vazias ou pintadas.
Fumam e aproveitam para falar entre uma baforada e outro. É mais difícil roubar frases de quem fuma. A leitura labial fica dificultada com o cigarro na boca e a fumaça em frente ao rosto.
A chorona pediu a conta. Acho que estava envergonhada. A amiga quis pagar no cartão. E o Luiz pediu que ela viesse até o caixa. É aqui que eu trabalho. Entre digitar a senha e a máquina cuspir o papel dizendo que, sim, ela tem saldo no banco, a mulher de luzes no cabelo me olha. Depois de um longo suspiro e de bater as longas unhas vermelhas na mesa fazendo aquele barulho enlouquecedor que as clientes acham que só elas fazem e que a gente ouve 30 vezes no dia, ela me encarou.
"Triste perder um cabeleireiro tão bom, ? O que vai ser dela sem ele? Só ele acertava o penteado. Imagina, um surto de profissionais qualificados indo embora de Porto Alegre porque em São Paulo e no Rio ganham mais. Vai ser assim com os engenheiros e até com os pedreiros. Já está faltando mão de obra. Imagina, como vai ser na Copa, então, sem ninguém pra atender os turistas?"
E, antes que ela largasse mais um "imagina", a máquina dispensou o papelzinho e ela foi embora. "Imagina como vai ser na Copa."
Oitava vez dita hoje. Cinco quadradinhos, três triângulos.
E desde o dia 31 de maio de 2009, quando a Fifa nos brindou com essa graça, já foram 6.230 vezes, nesses mais ou menos 700 dias _ descontando as minhas folgas e os feriados - que a frase foi repetida nesse café.
Imagina como vai ser na Copa, então?

terça-feira, 17 de maio de 2011

Coça-costas

“Meu nome é Luciana, eu sou dependente de homens que me dão atenção e eu estou sem falar com o Antônio Carlos há 16 dias.”
Foi a primeira vez em três meses que Ana Clara tinha aberto a boca pra falar. Vinha frequentando grupo de ajuda para mulheres carentes desde que Antônio Carlos disse que não daria certo. Embora viesse dando. Mentiu o nome. Omitiu, argumentou ela contando a melhor amiga.
- O que eu podia fazer? Descobririam quem eu sou. Desculpa, amiga, tive que usar teu nome.
Luciana perdoou. Sabia que a causa era justa e nobre. Decidiu acompanhar a amiga na reunião seguinte, mas se vingaria. Usaria o nome de Ana Clara.
Os encontros aconteciam sempre na segunda-feira. Ao contrário do que podiam imaginar, a segunda-feira é o dia mais triste para as mulheres solteiras. Não há festas, os bares estão vazios, nos shoppings nem uma mosca. A solução é voltar pra casa. Ou melhor, pro apartamento de um dormitório, com menos de 45 metros quadrados, que precisa de reformas e ainda vai levar 28 anos para ser quitado.
Ana Clara seguiu a dica da psicóloga, o grupo faria bem e, na pior das hipóteses veria que o seu drama não era maior nem pior do que o de tantas outras mulheres na casa dos 30 e que ainda não acharam o tal príncipe encantado.
O termômetro da Rua da Praia marcava 13 graus quando Ana Clara e Luciana tomaram o táxi.
- É na Borges, moço. É bem curtinha a corrida. Se não quiser fazer a gente pega outro – disse Ana Clara já avisando que a viagem duraria não mais que oito quadras.
- Pode entrar, moça.
Em dez minutos, por causa do trânsito, estavam no prédio alto e esguio da Borges de Medeiros. Na calçada, o guardador de carros reconheceu Ana Clara e avisou:
- As outras moças já entraram.
Era uma sala grande. Acarpetada com paredes brancas e cadeiras cinza, de plástico. No canto havia uma mesa com toalhas brancas até o chão. Uma garrafa térmica de chá de camomila e outra de café, sem açúcar. Um pacote de copinhos de café de plástico branco, meia dúzia daqueles palitinhos para misturar, um adoçante pela metade e um açucareiro transbordando.
Luciana contou pelo menos 23 mulheres. Todas jovens, a mais velha, a terapeuta, devia ter uns 45 anos. As outras, não tinham visto a primeira versão de Pecado Capital. A mesa ao lado a do café parecia o mostruário de uma fábrica de bolsas. De todas as cores, tamanhos, modelos e marcas. Das de camelô às de grife. Era uma sala para mulheres solteiras, independentemente da renda salarial.
- Meu nome é Cátia. Eu fui casada por cinco anos. Meu marido pediu o divórcio e eu dei. Mas ele não tem dinheiro para morar sozinho. Eu tenho dinheiro para comprar um apartamento para mim, mas continuo na casa com ele porque não quero viver sozinha.
- Muito bom, Cátia. Pelo menos, você já consegue falar. Vamos em frente – disse a psicóloga, olhando para Luciana.
Meio atrapalhada e se sentindo intimada pela terapeuta, Luciana levantou. Olhou para Ana Clara e largou falando.
- Olha, eu estou aqui por causa da Luciana. Meu nome é Ana Clara. Na verdade, eu não sou carente. Ou pelo menos eu acho. Eu sou independente. Faço o que quero, moro sozinha, não tenho que dar satisfação da minha vida a homem algum. Não preciso esquentar os pés de ninguém a noite, muito menos lembrar alguém de levar o lixo pra rua. Eu estou feliz! – afirmou Luciana, já meio gaguejando no final da frase.
- Está mesmo? – perguntou Ana Clara, olhando no fundo dos olhos da melhor amiga.
- Estou. Para que eu iria querer um namorado? – perguntou, olhando no rosto de todas as colegas de grupo.
- Para segurar tua mão no cinema! – respondeu uma ruiva que chorava sem parar.
- Para tirar os teus cabelos dos olhos e te acordar de manhã – continuou uma morena acima do peso.
E a uma a uma cada uma foi dando uma razão: ligar à noite para saber se ela está estressada, abraçá-la num momento de tristeza e comemorar com ela uma grande vitória, carregar a bolsa e comprar pipoca no cinema, esquentá-la no frio de maio, dividir uma caneca de chocolate quente, ir com ela no jogo de futebol e depois no shopping. E a lista só ia aumentando. Mas foi o último motivo que fez Luciana pensar.
- Coçar suas costas bem naquele lugar que as mãos não alcançam.
Luciana sentou e calou. Ouviu atentamente o que todas as outras disseram. Emprestou lencinhos para Ana Clara quando ela falou do fim da história com Antônio Carlos pela enésima vez. E com certeza é a milésima que Luciana ouvia.
Muitas lágrimas depois, as duas deixaram a sala e pegaram outro táxi.
- E aí, o que achou do grupo. Viu como é bom? – perguntou Ana Clara esperando a aprovação da amiga.
- Achei ótimo – concordou Luciana, meio que a contragosto.
Na manhã seguinte, depois de uma longa e reflexiva noite, Luciana saiu mais cedo de casa. Pegou o ônibus e desceu duas quadras antes do trabalho. Entrou numa loja de R$ 1,99.
- Moço, tem daqueles coça-costas de madeira?
- Tu mora sozinha, ?! Tá em falta. Tem que encomendar. Nunca vi como tem esgotado esse produto. E nem é novidade.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O pão

Janete sempre ia ao supermercado no final da tarde. Há 12 anos o mesmo ritual. E nem tinha cartão de fidelidade.
- É para pegar o pão quentinho – dizia às vizinhas.
Era terminar a sessão da tarde que Janete corria para o chuveiro. Depois do banho, com direito a shampoo importado e sabonete de erva doce, secava os cabelos e as dobrinhas do tempo com cuidado. Vestido envelope – um entre os 28 que tinha no roupeiro, todos feitos por ela na antiga máquina de costura Singer – maquiava-se e perfumava-se. Pronto, agora era pegar Carlinhos pelo braço e sair porta a fora. Estava cumprida a primeira parte do ritual. E era uma pernada da casa de Janete até o supermercado do bairro.
Janete, já tinha entrado na idade dos “enta” fazia tempo. Vinte e cinco anos na verdade. E como se dizia no tempo dela, ainda dava um caldo. Tinha criado dois filhos sozinhos. Um engenheiro. O outro professor. E desde que trocou o escritório de contabilidade pela casa com horta e varada com que sempre sonhou, cuidava do neto em tempo integral.
Carlinhos tinha três anos. O docinho da vovó. Cabelos encaracolados, loirinho, sapeca. Tinha uma mania irresistível: abrir as gavetas dos armários de Janete. Todas. Uma a uma. E, claro, deixá-las abertas. O salário de professor do pai e o de recepcionista de hotel da mãe não era suficiente para a creche. “A vovó cuida.” E cuidava bem. Das 24 horas do dia, Janete dedicava dez aos braços de Morfeu, dez para o neto, três para as novelas e o jornal e uma para o pão.
As vizinhas nunca entendiam por que Janete não fazia rancho como todas as outras.
- Eu não tenho carro para trazer o rancho – argumentava.
- Mas o mercado entrega – respondia Linor, a vizinha de porta que não tirava um velho lenço da cabeça na vã intenção de cobrir os cabelos brancos.
- Indo todo o dia eu aproveito as promoções – insistia.
- E gasta sola de sapato e tempo. Bem que tu podias fazer um rancho uma vez só no mês e vir tomar um chimarrão comigo todas as tardes – tentava Linor.
- Todas as tardes? Para que? – questionou Janete. - Para conversar, ora. - Até parece que a gente tem tanto assunto assim – disse Janete, dando a conversa por encerrado.
E Linor e todas vizinhas já sabiam o horário. Ficavam nas janelas de casa à espreita de Janete. Uma chegou a comprar walktalks para se falarem e comentarem as saídas diárias de Janete, sempre antes do por do sol.
E antes que o jornal local começasse, ela voltava. Numa mão Carlinhos, ora chorando de manha, ora de sono. Na outra as sacolas. E o cheiro do pão invadia a rua, e as casas. Era mais forte que o da curiosidade alheia.
- Dona Janete, que bom vê-la aqui. Tenho uma surpresa para a senhora – disse Luiz ao vê-la entrar pela porta do mercado naquele dia de chuva com o Carlinhos encharcado e ela mais ainda.
- Vim buscar o pão. Saiu a fornada das seis?
- Saiu sim. E eu pedi para guardarem os mais moreninhos para a senhora. Sei que gosta dos mais torradinhos – completou o gerente alisando o bigode como se pudesse colocar cada fio no seu devido lugar.
E o pão era só o começo. Porque a lista de compras nunca tinha um item sem só. Janete ficava horas pensando no que faltava em casa. E quando nada parecia faltar, era um tal de catar produto vencido no supermercado para passar sermão em Luiz, inventar uma fruta fora da estação para que ele providenciasse, falar do tempo, da notícia do jornal, das artes do Carlinhos. A lista de Janete nunca faltava um item: assunto.
Em mais uma tarde de compras como qualquer outra Janete enumerava. Patê, papel higiênico, detergente, caixa de ovos. Enfim, a fila do pão. E nada do gerente aparecer.
- O seu Luiz não veio hoje? – perguntou para a moça da friamberia que embalava os 155g de queijo prato que Janete havia pedido.
- Veio sim. Está no depósito recebendo uma mercadoria. Vou pedir para chamá-lo para a senhora – disse a atendente que naquele momento tentava abrir, com ajuda do indicador e do polegar, o saco plástico – Só vou embalar o pão antes.
E enquanto Janete observava o modo como a moça, novata no ofício de embalar pães, selecionava os que ela levaria para casa, surge Luiz por trás daquela cortinha de tiras largas e duras de plástico transparentes do fundo do açougue. Ainda limpando as mãos viu Janete no balcão. E foi tarefa para um relâmpago trazê-la de volta a Terra.
- Dona Janete, que prazer. Nosso dia não é completo sem a sua visita.
- Que isso. O senhor que é muito gentil. Eu queria lhe perguntar. O Carlinhos viu na televisão a propaganda de um salgadinho novo e não achei na prateleira.
- A senhora me diga qual é que eu mando providenciar. - Pode deixar. Da próxima vez que o comercial passar na televisão, eu anoto o nome.
E enquanto Janete e Luiz tramavam uma extensa conversa sobre o mundo dos salgadinhos e seus sabores e aromas, o mundo caía lá fora, o neto corria pelos corredores de produtos de higiene e o pão esfriava.
- Mãe, porque a senhora sai sem celular. Tive que sair na vizinhança perguntando pela senhora e pelo Carlinhos. As vizinhas me disseram que, com certeza, a senhora estava aqui. Vamos, está desabando um temporal – disse o filho professor, pai de Carlinhos, que como fazia desde pequeno gostava de chegar sorrateiro e pegar de susto a todos que não o aguardavam nem sequer sonhavam com a sua presença ali.
- Meu filho, onde está a sua educação? Dê boa tarde para o seu Luiz, o dono do supermercado.
- Boa tarde, seu Luiz – disse o filho estendendo a mão para cumprimentar aquele senhor estranho de gravata verde.
- Boa tarde. Você deve ser o Josué? O pai do Carlinhos. Sua mãe fala muito em você – comentou Luiz, dando uma piscadinha discreta para Janete.
Mais vermelha que a massa de tomate que estava no cestinho de compras, Janete nem respondeu.
- Dona Janete, seu pão – disse a atendente da padaria, alcançando a sacola com seis pãezinhos, com o braço dormente de tanto esperar por uma pausa entre a prosa de Janete e Luiz.
- Pão? – disse o filho.
- Sim! Pão tem que ser quente, fresquinho e tem que buscar todo o dia, não é? - respondeu Janete, arrancando o filho de perto do gerente
– Vamos! Se tu quer ir vamos. O vermelho de vergonha se transformou em vermelho de raiva.
Pagou a conta. R$ 37,55. Pegou o troco e saiu com o neto pela mão. Dessa vez o filho levava as sacolas. No carro, um silêncio ensurdecedor. Em casa, Janete guardou as compras enquanto Josué jogava bola com Carlinhos no meio da sala, quebrando as regras de infância e um vaso de vidro colorido. Suado, cansado, o filho entrou na cozinha. Na geladeira pegou uma garrafa de água, serviu, e antes de beber sentou-se à mesa. E lá estava a sacola de pão. Ainda quente, suando tanto quanto Janete que a essa altura do campeonato já sabia que teria que responder ali a pergunta fatal.
- O que a senhora vai fazer com isso? – disse o filho apontando para o saco de pão - E a sua alergia a trigo e glúten? Tá querendo baixar hospital de novo?

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Voz de comando

Pedro sempre reinou. A mãe dizia “guri, não vai aí que tu vai te machucar”, “guri, não mexe na panela no fogo”, “guri, leva um casaco e o guarda-chuva”. E a mãe do Pedro sempre tinha razão. Se ele ia, se machucava. Se ele mexia na panela, se queimava. Se não levava o casaco e o guarda-chuva, pode apostar, chovia e fazia o maior frio.

Quanto o Pedro fez 18 o pai lhe deu duas opções. Ou faz a carteira de motorista ou faz a carteira de motorista. Pedro rodou três vezes no teste prático. Ficava nervoso, receoso com o que o avaliador iria falar. Pedro odiava que falassem enquanto ele dirigia. Nem rádio tinha no carro. No trânsito era só ele, o carro e o vento. Sim, o vento, porque o carro de Pedro não tinha ar condicionado.

Toda vez que tinha que dar carona a um amigo, levar a mãe na casa de alguma amiga ou o pai ao médico, Pedro fazia uma cerimônia. Tinha no porta-luvas do carro um guia de ruas, com um mapa gigantesco da cidade. Ainda com o carro estacionado pedia ao caroneiro o endereço, pegava o guia e com a mesma solenidade com que um padre folheia o missal, Pedro passava página a página o guia.

Um dia Pedro se apaixonou. Luciana era linda e andava a pé. Pedro conquistou a moça com a sua boa vontade para dar caronas intermináveis. Levava a guria para onde ela quisesse. Mas sempre se perdia. Luciana tinha alergia a pó e abrir o guia de ruas era como provocar um tsunami de espirros. Bem capaz que o Pedro marcaria esse gol contra. Então, mesmo se perdendo, Pedro ouvia as orientações de Luciana.

“Vira ali.”

“Dobra à direita.”

“Passou, era a outra rua.”

“Presta atenção, Pedro. Te falei que era para entrar depois da casa amarela.”

“Cuida Pedro! Vai bater no carro do lado.”

O namoro resistiu menos que um tanque cheio. Pedro podia aturar tudo: ciúmes, horas extras, ex-namorados ligando, roupas curtas, baladas sozinhas. Tudo, menos os palpites no trânsito.

Na tentativa de reatar, Luciana mandou para casa de Pedro um pequeno pacote e um bilhete.

“Aceito as caronas de volta se aceitar o meu presente. E usá-lo.”

Ele nem esperou terminar de ler e já estava rasgando o pacote. Um GPS.

- O que é isso? – perguntou Pedro sem entender a função do aparelhinho.

- Um GPS. É um aparelho que as mulheres inventaram para que os homens não se percam, não precisem fazer cara feia para perguntar onde fica tal rua e cheguem sempre no horário – explicou a cunhada, antes de levar uma cutucadinha do marido.

- Vai ser a última chance dela – determinou o Pedro, já se localizando no mapa.

E o GPS era uma beleza. A voz mais macia que algodão doce parecia seduzir Pedro mais do que canto de sereia.

“Vire a direita em 100 metros.”

E Pedro virava.

“Ande mais 135 metros e vire a esquerda e depois à direta.”

E Pedro dirigia o 135 metros e virava a esquerda e depois à direita.

Era, enfim, obediente.

Mas a obediência teve um custo. Quando Luciana estava no carro não podia dar um pio. Só a voz do GPS ilustrava o ambiente. Era como se fosse a alma daquele Gol bolinha verde metálico.

- Clarinha.

- Clarinha. Tu deu nome pro GPS?

- Pro GPS não. Para a moça que narra o meu itinerário.

- Para mim chega. Onde já se viu namorada ser trocada por voz de GPS. Prefiro um perdido que me ouça que um achado que me ignora, que ignora as minhas ajudas pelo caminho.

- Pode ir. A porta do Gol é serventia da casa.

E Luciana saiu batendo porta. Lacrando.

E faz algum tempo que a única voz feminina que se ouve dentro daquele Gol é a da Clarinha. Única. Absoluta. Exata. E só assim a mãe do Pedro descobriu o que era a tal voz de comando que a adestradora de cães tanto falava.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Todo dia é dia

"Olha, não vou te desejar Feliz Dia Internacional da Mulher porque todos os dias são das mulheres."
Podia ser mais uma desculpa (esfarrapada e batida) de um amigo ao tentar consertar a falha que achava que tinha acabado de cometer: a de não me cumprimentar pela data. Afinal, era 8 de Março. No fim, dei meu braço a torcer. Ele tem razão, todos os dias são das mulheres.
Claro que é importante ter uma data para lembrar as lutas femininas por direitos trabalhistas, de voto, de igualdade. E mais importante que isso, é lembrar, todos os dias, da importância de cada uma na sua vida.
Mulheres são sensíveis, olham nos olhos e enxergam a alma. Percebem a sua tristeza camuflada e o sorriso forçado.
São frágeis e fortes. Choram no comercial de margarina, choram rios pela dor das amigas e pelas vitórias delas e dos outros. Ao mesmo tempo, o rio de lágrimas pode secar, virar um deserto se, mesmo chorando por dentro, elas precisarem demonstrar uma fortaleza inabalável, ou uma frieza desumana.
São doces como chocolate ao leite e amargas como chocolate meio amargo. Sim, porque elas não são amargas por completo. Basta uma palavra torta, um olhar desatento, uma pisada na bola e o sorriso virou beiço.
São felizes nos dias nublados por poder usar as botas novas e ficam furiosas por tomar um banho quando um carro passa.São tristes em dias de sol, por estarem em uma sala fechada e não em qualquer outro lugar. São loiras, morenas, ruivas, mechadas, lisas, crespas, onduladas. E tudo de uma hora para a outra.
São delicadas, abruptas, ansiosas, nervosas, serenas, pacientes.São várias em uma única embalagem, sem rótulo e sem bula. Não tente entendê-las, nem decifrá-las.São derretíveis pelo calor do verão, pelo suador provocado pelos cinco minutos a mais de sono que se tornam 30, pelo olhar doce do filho, pelo abraço apertado do namorado, pelo calor do cobertor.
Elas querem ser amadas, mimadas, cuidadas, bajuladas. E, por favor, deixe que elas façam o mesmo com você.
E deixem que elas tente controlar o que é incontrolável. Fazem isso com o frizz do cabelo, com a carreira que não anda, com o namorado independente e com a bagunça da casa da família. E, disfarçadamente, ela fará isso com você.
Então, não deseje felicidades a elas apenas no dia 8. Deseje, secretamente, todos os dias. E faça a única coisa que é capaz de torná-las plenas. Deixe que elas sejam elas. Apenas. Sem cintas elásticas apertando a barriga, sem meia calça anticelulite, sem máscara antirugas, sem mentiras, sem farsas. Apenas ser. Sem dó, nem piedade. É o melhor presente. Dica de quem é uma delas.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Ponto cego

Sabe quando tu vem dirigindo na estrada e, do nada, surge um carro na pista do teu lado. Um carro que minutos atrás não estava ali. Tu sequer tinha ouvido o som do motor dele, ou notado a sua sombra ou faróis. Estava no ponto cego.
Aconteceu comigo outro dia. Eu andava na estrada, indo de casa para o trabalho, bem bela a contente, quando ouço uma buzina alta e contínua. Olhei pelo retrovisor, pelos espelhos laterais, e nada do tal carro. E a buzina continuava. Parecia que o motorista apertava mais forte a buzina que o acelerador do carro invisível.
De repente, levei meu carro para a esquerda, e vi surgir aquele carro. Parecia um Gol, daqueles da primeira geração. O motorista, brabo que só ele, reinava na direção. E furioso, ele sumiu, acelerando mais ainda.
Fiquei me questionando, porque as montadoras fazem carros com pontos cegos. Porque não vemos coisas tão óbvias e grandes quanto um carro que trafega quase ao nosso lado. Pelo menos, inventaram a buzina. Já não vejo, pelo menos posso ouvir.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Folha branca

Poucas coisas me deixam mais angustiada do que uma folha em branco. Eu não posso nem ver. Com uma caneta na mão eu rabisco um quadrado, sempre cheio e depois dele vários outros.
Há dias que a folha branca fica cheia de palavras soltas. Podem ser as palavras do interlocutor, ou as que primeiro vierem à minha cabeça. Depois, a mania de escrever é substituída pela de preencher as letras. As letras “O” ficam cheinhas, assim como as barriguinhas dos “Bs”.
Também não sei o motivo de fazer isso. Sei que não posso ficar parada frente à folha branca que parece gritar para ser preenchida. Eu tento. Nem sempre consigo. Acho que cada folha merece palavras específicas ou quadrados ou estrelas ou espirais únicas.
E quando a gente não consegue escrever as palavras que aquela folha branca pedia? Eu costumo guardar a folha. Não jogo fora. Ela é única, especial e dediquei a ela a minha melhor caligrafia, os minutos e a tinta da minha caneta. Guardo com carinho, por que essa folha nunca será igual a qualquer outra. Guardada, numa caixa especial bem fechada para que não amarele com o tempo e o sol, essa folha dá lugar à outra.
Acabei de guardar uma folha dessas. Eu, sinceramente, não queria deixá-la ir para a caixa. Tinha desenhos, palavras, estava amassada. Escrevi nela com canetas de várias cores, com brilho, opaca. Rabisquei nela com lápis de cor. Ficou linda, colorida, cheia de vida. Aquela folha branca, agora não mais pálida, foi colocada com cuidado e carinho na caixa das boas lembranças.
Agora, sobre a mesa, repousa uma folha branca nova, também única. Ainda não sei o que fazer com ela. Eu a olho e vejo a outra, a colorida, que eu ainda queria sobre a bancada. Talvez eu não tenha feito os desenhos como queria ou escrito as palavras que ela pedia.
Não consigo ouvir o que essa página nova quer de mim, o que grita, se quer palavras, desenhos, se quer virar uma dobradura. Não sei começo pelo canto direito superior ou o esquerdo inferior. Não sei o que fazer. Virar a página não é fácil e, às vezes, independe de nós.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O valor da chuva

Uma gota. Duas. Três. Dezenas. Milhares. Uma a uma elas caem no chão, na terra seca, nas folhas queimadas pelo sol. Ajudam a renovar a plantação, regam canteiros, umedecem os vasos de flor. Sempre achei que a chuva é sinal de boa sorte, de fartura, de renovação.
A chuva vem, caí, embala o sono, vai embora e fica tudo melhor. A grama verde, o perfume de terra molhada, o carro lavado.
É a chuva que dá graça aos dias de sol.
Quando chove por muitos dias, óbvio que a gente sente falta do sol, reclama de ter que carregar a sombrinha na bolsa, de andar com os pés molhados e da goteira no meio da sala. Mas se ela não vem, reclamamos do calor, do sol que queima a pele como fogo, do abafamento, do frescor da chuva.
Chuva é bom. Tempestade não. Tempestade arranca as árvores do chão, leva os móveis e vidas na correnteza. Tempestade é bagunça, é tirar as coisas de ordem, é mudar o rumo do que estava seguro. Chuva, não. Chuva é calma, é tranquilidade, é deixar que a água entre na terra e, pouco a pouco, alcance a raiz e promova uma mudança sutil na planta. Mais verde, mais forte, mais firme, mais viva.
Quero chuva e quero sol. Em equilíbrio. Tudo na medida certa e no seu tempo. Quero folhagens fortes, bonitas, férteis e felizes. Chega de tempestade.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Inquilinas

Um dia ainda descubro o que atrai tantas abelhas pro meu quarto. Travo com elas uma relação de amor e ódio. Se bem que nos últimos meses tem sido constantemente de ódio.

No frio do inverno, minhas amigas abelhudas nem pensavam em entrar na minha câmara fria. Gelado que só ele, meu quarto era sereno, sem zunidos nem ferrão. As noites eram tranquilas e, durante o dia, não precisava andar cuidando onde piso como se o tapete do meu quarto fosse um campo minado.

E foi o calor da primavera chegar que elas fizeram da minha janela uma vitrine para quem quiser apreciar o voo das minhas inquilinas. Desconfio seriamente de que elas foram atraídas pela cortina de flores que pendurei na única janela por onde o sol e a luz do semáforo da esquina insistem em entrar.

Desde então elas não me abandonaram. Estranho é que ao invadir o quarto, elas se concentram primeiro em uma lâmpada. Depois, rumam para a janela. Ficam horas zunindo no vidro como se ele, além de transparente, fosso permeável. Ficam batendo com as anteninhas no vidro como se isso fosse me comover. E mesmo que eu me comova e abra a janela, as danadas não deixam o recinto. Elas querem é atucanar. No fim, antes mesmo do sol se pôr, elas perecem e caem todas no piso do quarto.

É muito breve a vida das abelhas. Sinto que, por não terem consciência do exato valor de cada minuto de sua existência, elas ficam ali batendo a cabeça contra o vidro, enquanto deveriam voar livres numa praça e não numa cortina florida.

E por mais que eu tente impedi-las de entrar, as danadas sempre encontram uma nova brecha, uma fresta de janela aberta. O quarto já não é mais meu. É delas. Elas que ditam meus horários, que determinam se eu vou andar descalça ou de havaianas. E sim, elas já me picaram. Adonaram-se também das minhas roupas. Não está longe o dia em que precisarei bater na porta e pedir licença para entrar no quarto que antes era só meu.

Abelhas, proponho uma trégua. Eu no meu canto, vocês na colmeia. Em paz. Cada uma cuidando da sua vida. Que tal?